São Paulo, sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

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BARBARA GANCIA

O ego encolhido de dona Zilda Arns


Se partisse em missão para o Haiti, eu ligaria correndo para passar a informação para a Mônica Bergamo


ESTAVA AO VIVO no programa da amiga Silvia Poppovic, na manhã de quarta-feira, quando o repórter especial Sérgio Gabriel entrou no ar subitamente para informar sobre a morte de dona Zilda Arns.
Tive vontade de tirar o microfone, levantar da cadeira e sair à procura de um copo d'água para ver se desfazia o nó que se formara na minha garganta. Mas, naquele momento, ali, na frente de todo mundo, só consegui tartamudear algumas palavras comparando a perda à morte do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello no Iraque.
Somos uma sociedade com uma carência por heróis de verdade do tamanho de um buraco negro. E, quis o destino que fôssemos perder dois leões como Sérgio e dona Zilda, quando ambos estavam a léguas de casa, em missões que os meteram em subterrâneos do inferno que nem mesmo os moradores dos morros mais violentos dos subúrbios mais esquecidos de nossas grandes cidades conseguiriam vislumbrar.
Madre Teresa de Calcutá, apesar de sua imensa humanidade, era mulher de não dar um passo sem consultar sua assessoria de marketing. Faz sentido. Fosse ao contrário, santificada ou não, talvez o mundo não tivesse tomado conhecimento da existência de uma corrugada missionária albanesa trabalhando nas favelas de Bangladesh.
Eu mesma, se resolvesse partir em missão humanitária para o Haiti, ligaria correndo para passar a informação para a Mônica Bergamo, à Sonia Racy, às revistas "Caras" e "Cães e Companhia", sei lá, promoveria um escarcéu para que o mundo inteiro ficasse sabendo o quanto sou bacana e altruísta.
Mas, veja só. Você não tinha notícia, meu dileto leitor, nem eu a menor ideia de que dona Zilda Arns estava em Porto Príncipe, nestes dias de janeiro, fazendo o que sempre fez: levando seu coração, seu conhecimento e seu esforço -aos 75 anos- até os mais necessitados. Silvia Poppovic e eu ainda tentávamos digerir a magnitude da perda da fundadora da Pastoral da Criança, quando o sobrinho de dona Zilda, o senador paranaense Flávio Arns, entrou ao vivo para dizer que havia passado a noite de Natal com a tia, mas que não sabia que ela tinha viajado para o Haiti.
Se eu tivesse um sobrinho como Flávio Arns, cujo senso de oportunidade o faz trocar de partido como quem troca de par de meias, talvez também não lhe revelasse o itinerário de minha agenda. Como se sabe, o senador já passou pelo PSDB, depois foi para o PT e saiu de lá em agosto do ano passado para voltar a ser tucano, alegando não concordar com a maneira como o partido tratou as denúncias contra José Sarney.
Mas isso pouco importa. O que interessa é que a falta de ego de dona Zilda Arns se manifestava de forma, em essência, budista. Ela não existia.
O que importava era sua obra, era o outro. Nada mais ecumênico para uma católica, não é mesmo? E é da compaixão dela que eu quero lembrar neste momento, em que nossos rapazes das Forças Armadas estão mostrando o seu valor e morrendo longe de casa.

barbara@uol.com.br
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