São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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DANUZA LEÃO

Vivendo e aprendendo

A vida é mesmo muito incrível: basta um fato para que se caia num desespero profundo, e basta um outro fato para que se passe em um minuto, do fundo desse desespero, a ser a pessoa mais feliz do mundo.
Olha o que me aconteceu: depois de uma gripe forte, o médico pediu os exames de praxe, entre eles uma radiografia do pulmão. Dois dias depois, fui buscar o resultado e -fumante da vida toda- me peguei morrendo de medo de abrir o envelope; resolvi, então, deixar para ver em casa. De preferência, nunca.
No caminho, tive a mais absoluta certeza de que tinha câncer; afinal, dentro da lógica feminina, se o médico pede uma radiografia, é porque ele já sabe.
E já que era essa a realidade, precisava aprender a lidar com ela.
Em primeiro lugar, tinha que falar com alguém; mas com quem? Nenhuma amiga é suficientemente discreta, e daí a pouco todos saberiam que estava à beira da morte. Não que isso seja uma desonra, mas não gostava de pensar que minha saúde -e meus pulmões- seria assunto de mesa de bar. Então o melhor era ficar quieta.
Mas para ficar quieta também não dava; pensei em voltar à análise, mas lembrei que em janeiro/ fevereiro todos os psi estão de férias. Além disso, minha morte merecia mais de 50 minutos para ser discutida -para mim, pelo menos.
Contar à família, nem pensar. Por vaidade, onipotência ou os dois, sempre tive horror a incomodar ou preocupar as pessoas de quem mais gosto, e sobretudo não queria nem pensar no pior: no tratamento.
Além da saúde, ia perder os cabelos -o que, sempre segundo a lógica feminina, era pior que tudo. Lembrei de quando o cabeleireiro cortava dois centímetros a mais do que devia: além de chorar e cair em profunda depressão, queria me trancar em casa até que eles crescessem. Ah, os cabelos: se tivesse guardado numa poupança todo o dinheiro que gastei em cremes e shampoos durante a vida, seria hoje uma mulher rica. Rica não, milionária.
Fui pensando e decidi: não ia contar para ninguém, nem me tratar. Sempre tive fama de corajosa (não sei por que) e vou fingindo só para manter a pose, mesmo me acabando por dentro. Nada de hospitais, nada de tratamentos, nem o médico ia saber. Não se pode confiar na discrição de médicos jovens com os quais se cruza em restaurantes e festas; eles têm a mania de querer tratar as doenças e talvez, na melhor das intenções, procurasse uma pessoa da minha família para dividir a responsabilidade. Não: nem ele ia saber.
Prática, resolvi, isso sim, botar a vida em ordem -papéis, documentos, para (mais uma vez) não dar trabalho a ninguém. E quem sabe tomo um avião e vou para bem longe, para curtir o que me resta de futuro? Paris, uma praia do Nordeste, sei lá?
Feliz não estava, mas essa hora chega para todo mundo, e o jeito era tentar enfrentar os fatos da melhor maneira possível, e pronto. Mas por dentro só Deus -se ele existe- sabia como estava. E quem acha graça em morrer?
Cheguei em casa, me espichei no sofá, acendi um cigarro e me preparei para abrir o envelope. Acendi outro, respirei fundo -nunca tinha prestado atenção em como é bom respirar- e enfrentei. Não tinha nada.
Fui para a janela olhar o mar e me senti, de novo, imortal. Mas pelo sim pelo não, cigarro nunca mais.
E pensei que todos nós deveríamos ser ameaçados, às vezes, de perder coisas às quais não damos a menor importância, como a saúde, por exemplo.
Para, como dizia minha avó, aprender a valorizar.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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