São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

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Pegação a bordo

PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Vai viajar de navio? Que maravilha. E pensar que você ainda ganha pra isso!", admira-se a vizinha do repórter.
A maravilha: durante quase 60 horas ininterruptas de música eletrônica tribal (a mais selvagem de todas) e house, os passageiros dançam e se drogam, dançam e se drogam, dançam etc, até que passam a rir sozinhos e a reverenciar uma plateia imaginária, com os braços levantados, como se fossem a Luma de Oliveira na avenida; nos corredores dessa babilônia flutuante, os garotos imploram por sexo a garotas que resistem, mas não muito. "Pelo amor de Deus, mina, olha pra mim... Vai, olhaaaaaaaaa!...", gritam vários.
Isso foi no Vibe Fest on Board, um dos quatro cruzeiros temáticos que os baladeiros consagraram na temporada 2009. Navegou de Santos a Buzios entre 16 e 19 de janeiro.
Mas a Folha embarcou também no Freedom on Board, o primeiro produzido no Brasil para o público gay. O navio Island Scape (o mesmo do Vibe) foi de Santos a Florianópolis no fim de semana passado e ofereceu a um passageiro igualmente dado a excessos dois dias e três noites de música eletrônica.
A diferença entre os dois grupos, além da orientação sexual, é a faixa etária da maioria (os gays baladeiros podem ter entre 18 e 50, enquanto os baladeirinhos selvagens, no máximo, 30) e os aditivos utilizados.

"Uso tudo"
No Vibe, bebe-se muito álcool com energético, toma-se ecstasy e, bem menos, ácido.
"A maioria prefere bala [ecstasy], porque tem uma sintonia maior com a música eletrônica", diz a modelo Letícia, 19.
No Freedom, os gays bebem menos e usam mais drogas. As mais populares entre eles são ecstasy, cocaína, K (alucinógeno), GHB (euforizante) e Ice (estimulante cerebral). "Uso tudo. Você queria o quê, que eu fosse pra cabine, dormir? Quero aproveitar até o último minuto", diz o cabeleireiro Eder, 34, cujos olhos ligeiramente vidrados piscam sem sintonia.
As abordagens sexuais são diferentes nos dois cruzeiros. No Vibe, o leva-e-traz de garotos e garotas da piscina para a cabine é intenso. Como os quartos, em geral, são duplos, é preciso sinalizar quando um casal está lá dentro. No 9072, penduraram uma cueca na maçaneta da porta como sinal de "ocupado".
Mas é no restaurante que se sabe (e se vê) tudo. A empresária Telma, 44, conta que sua vizinha de cabine transou com três rapazes numa noite. "Eu só não teria percebido se fosse deficiente auditiva. Foi aquele entra e sai de gente, a menina arfava, batia na parede, gritava."
Entre os gays, as experiências são consentidas e, por isso, não se registra tanta gritaria nos corredores.
"Meu marido levou outro para a cabine, mas não vejo problema. Não estaríamos em um cruzeiro desses se não fosse assim", afirma o médico Alfredo, 42, com uma garrafinha de plástico de água enfiada na parte de trás do sungão vermelho.

À frente do rei
Para embarcar no Island Scape, os baladeiros pagaram entre R$ 1.790 e R$ 6.000 (o gay foi mais caro) -sem bebidas.
Segundo a organização, o Freedom esgotou as vendas em 33 dias, "antes de todos os cruzeiros, inclusive o do Roberto Carlos". "O de 2010 a gente quer fazer no Royal Caribbean [navio maior]", diz Edu Cristofaro, da agência PromoAção.
(Isso pode significar alguma melhoria na comida, considerada por muitos, como a empresária Estela, 40, "inaceitável". "Olha isso", diz ela, cutucando um pedaço de frango estorricado. O administrador Diogo, 23, desafia a vendedora Paula, 24, a provar a calda "água suja" de chocolate).
As recentes notícias de problemas em cruzeiros não desanimaram os baladeiros. "Meu, eu disse que eles não iam olhar todos os vidros de remédio para ver se tinha "bala'", comenta uma garota com a amiga, em voz baixa, ao entrar no navio.
O delegado-chefe da polícia marítima do porto de Santos, Luiz Carlos Oliveira, diz que a investigação no embarque é complicada. "As pessoas estão entrando num navio, não numa penitenciária. Não dá para fazer pente-fino na bagagem de 2.000 passageiros. Isso seguraria a embarcação três dias."

Gente feliz
O centro nervoso do navio balada é a área da piscina, onde centenas de pessoas dançam sem parecer enxergar nada além de si mesmos. Quinze DJs se revezam em um palco encimado por refletores que giram como birutas. No Vibe, o bancário Leonardo, 24, ergue uma folha de papel onde se lê: "Aki só tem gente feliz".
Em sua felicidade, um rapaz sem camisa urina no tombadilho, bem na passagem dos baladeiros; outro grita que pendurou os quadros de sua cabine de cabeça para baixo: "Cê é louco véio! Aauhuaáá", riem todos.
Para Cristofaro, "a droga, no Vibe, era só mais um problema". "Eles puxavam os cabelos das meninas, queriam virar o bote que levava os passageiros até a praia, uma loucura."
No Freedom, 42 seguranças estão autorizados a retirar da pista suspeitos de portar droga e revistar suas cabines.
Doze pessoas são pegas. "Eles serão entregues à PF assim que desembarcarem", diz o chefe dos seguranças, Ricardo Pereira. Ninguém foi entregue, segundo a própria PF no porto.
(Em tempo: não se pode afirmar que o navio inteiro se excedeu nas drogas e no sexo, embora ninguém tenha sido flagrado lendo "Guerra e Paz").

Pedrita doidona
No Vibe, tem festa à fantasia. Às 4h de domingo, pedritas, coelhinhas e múmias doidonas dançam o "rebolation" (passo tipo samba acelerado). Uma sirene de alarme de bombardeio antiaéreo soa nas caixas de som, mas uma "mulher maravilha" sorri, de olhos fechados, girando devagar a cabeça.
Os gays não precisam de "festa à fantasia" para aparecer de enfermeira, anjo, noiva.
As garçonetes não param de felicitá-los. "Eles são amigáveis, educados, mesmo usando droga te respeitam. Os playboys [do Vibe] são crianças de 25, dão ordens, gritam", diz Ariane.
Para o personal trainer Marcelo, 35, "o gay não precisa de um cruzeiro para enlouquecer e trepar com todo mundo". "Ele já faz isso lá fora."
O engenheiro químico Aurélio, 39, afirma: "A gente sabe usar droga, não vai ficar berrando, destruindo tudo".
Na véspera, Aurélio tomou GHB e ecstasy, mas não foi suficiente. Sentindo-se desanimado - algo impensável na perspectiva do baladeiro-, foi à cabine atrás de "padê" (cocaína).
O centro médico do Island Scape funciona das 8h às 10h e das 17h30 às 19h. A consulta dentro do horário custa US$ 120. Fora, US$ 260. Não se informa se houve atendimentos por causa de droga ou bebida.
Segunda-feira, 7h30, o navio aporta. A desaceleração dos baladeiros nas escadas do Island Scape, onde aguardam o desembarque, é lenta e silenciosa. Aparentemente, não há mais ninguém para garantir que ali só tem gente feliz.


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