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Pegação a bordo
PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Vai viajar de navio? Que maravilha. E pensar que você ainda ganha pra isso!", admira-se a
vizinha do repórter.
A maravilha: durante quase
60 horas ininterruptas de música eletrônica tribal (a mais
selvagem de todas) e house, os
passageiros dançam e se drogam, dançam e se drogam, dançam etc, até que passam a rir
sozinhos e a reverenciar uma
plateia imaginária, com os braços levantados, como se fossem
a Luma de Oliveira na avenida;
nos corredores dessa babilônia
flutuante, os garotos imploram
por sexo a garotas que resistem,
mas não muito. "Pelo amor de
Deus, mina, olha pra mim... Vai,
olhaaaaaaaaa!...", gritam vários.
Isso foi no Vibe Fest on
Board, um dos quatro cruzeiros
temáticos que os baladeiros
consagraram na temporada
2009. Navegou de Santos a Buzios entre 16 e 19 de janeiro.
Mas a Folha embarcou também no Freedom on Board, o
primeiro produzido no Brasil
para o público gay. O navio Island Scape (o mesmo do Vibe)
foi de Santos a Florianópolis no
fim de semana passado e ofereceu a um passageiro igualmente
dado a excessos dois dias e três
noites de música eletrônica.
A diferença entre os dois grupos, além da orientação sexual,
é a faixa etária da maioria (os
gays baladeiros podem ter entre 18 e 50, enquanto os baladeirinhos selvagens, no máximo, 30) e os aditivos utilizados.
"Uso tudo"
No Vibe, bebe-se muito álcool com energético, toma-se
ecstasy e, bem menos, ácido.
"A maioria prefere bala [ecstasy], porque tem uma sintonia
maior com a música eletrônica", diz a modelo Letícia, 19.
No Freedom, os gays bebem
menos e usam mais drogas. As
mais populares entre eles são
ecstasy, cocaína, K (alucinógeno), GHB (euforizante) e Ice
(estimulante cerebral). "Uso
tudo. Você queria o quê, que eu
fosse pra cabine, dormir? Quero aproveitar até o último minuto", diz o cabeleireiro Eder,
34, cujos olhos ligeiramente vidrados piscam sem sintonia.
As abordagens sexuais são diferentes nos dois cruzeiros. No
Vibe, o leva-e-traz de garotos e
garotas da piscina para a cabine
é intenso. Como os quartos, em
geral, são duplos, é preciso sinalizar quando um casal está lá
dentro. No 9072, penduraram
uma cueca na maçaneta da porta como sinal de "ocupado".
Mas é no restaurante que se
sabe (e se vê) tudo. A empresária Telma, 44, conta que sua vizinha de cabine transou com
três rapazes numa noite. "Eu só
não teria percebido se fosse deficiente auditiva. Foi aquele entra e sai de gente, a menina arfava, batia na parede, gritava."
Entre os gays, as experiências são consentidas e, por isso,
não se registra tanta gritaria
nos corredores.
"Meu marido levou outro para a cabine, mas não vejo problema. Não estaríamos em um
cruzeiro desses se não fosse assim", afirma o médico Alfredo,
42, com uma garrafinha de
plástico de água enfiada na parte de trás do sungão vermelho.
À frente do rei
Para embarcar no Island Scape, os baladeiros pagaram entre
R$ 1.790 e R$ 6.000 (o gay foi
mais caro) -sem bebidas.
Segundo a organização, o
Freedom esgotou as vendas em
33 dias, "antes de todos os cruzeiros, inclusive o do Roberto
Carlos". "O de 2010 a gente
quer fazer no Royal Caribbean
[navio maior]", diz Edu Cristofaro, da agência PromoAção.
(Isso pode significar alguma
melhoria na comida, considerada por muitos, como a empresária Estela, 40, "inaceitável". "Olha isso", diz ela, cutucando um pedaço de frango estorricado. O administrador
Diogo, 23, desafia a vendedora
Paula, 24, a provar a calda "água
suja" de chocolate).
As recentes notícias de problemas em cruzeiros não desanimaram os baladeiros. "Meu,
eu disse que eles não iam olhar
todos os vidros de remédio para
ver se tinha "bala'", comenta
uma garota com a amiga, em
voz baixa, ao entrar no navio.
O delegado-chefe da polícia
marítima do porto de Santos,
Luiz Carlos Oliveira, diz que a
investigação no embarque é
complicada. "As pessoas estão
entrando num navio, não numa
penitenciária. Não dá para fazer pente-fino na bagagem de
2.000 passageiros. Isso seguraria a embarcação três dias."
Gente feliz
O centro nervoso do navio
balada é a área da piscina, onde
centenas de pessoas dançam
sem parecer enxergar nada
além de si mesmos. Quinze DJs
se revezam em um palco encimado por refletores que giram
como birutas. No Vibe, o bancário Leonardo, 24, ergue uma folha de papel onde se lê: "Aki só
tem gente feliz".
Em sua felicidade, um rapaz
sem camisa urina no tombadilho, bem na passagem dos baladeiros; outro grita que pendurou os quadros de sua cabine de
cabeça para baixo: "Cê é louco
véio! Aauhuaáá", riem todos.
Para Cristofaro, "a droga, no
Vibe, era só mais um problema". "Eles puxavam os cabelos
das meninas, queriam virar o
bote que levava os passageiros
até a praia, uma loucura."
No Freedom, 42 seguranças
estão autorizados a retirar da
pista suspeitos de portar droga
e revistar suas cabines.
Doze pessoas são pegas.
"Eles serão entregues à PF assim que desembarcarem", diz o
chefe dos seguranças, Ricardo
Pereira. Ninguém foi entregue,
segundo a própria PF no porto.
(Em tempo: não se pode afirmar que o navio inteiro se excedeu nas drogas e no sexo, embora ninguém tenha sido flagrado lendo "Guerra e Paz").
Pedrita doidona
No Vibe, tem festa à fantasia.
Às 4h de domingo, pedritas,
coelhinhas e múmias doidonas
dançam o "rebolation" (passo
tipo samba acelerado). Uma sirene de alarme de bombardeio
antiaéreo soa nas caixas de
som, mas uma "mulher maravilha" sorri, de olhos fechados, girando devagar a cabeça.
Os gays não precisam de "festa à fantasia" para aparecer de
enfermeira, anjo, noiva.
As garçonetes não param de
felicitá-los. "Eles são amigáveis,
educados, mesmo usando droga te respeitam. Os playboys
[do Vibe] são crianças de 25,
dão ordens, gritam", diz Ariane.
Para o personal trainer Marcelo, 35, "o gay não precisa de
um cruzeiro para enlouquecer
e trepar com todo mundo". "Ele
já faz isso lá fora."
O engenheiro químico Aurélio, 39, afirma: "A gente sabe
usar droga, não vai ficar berrando, destruindo tudo".
Na véspera, Aurélio tomou
GHB e ecstasy, mas não foi suficiente. Sentindo-se desanimado - algo impensável na perspectiva do baladeiro-, foi à cabine atrás de "padê" (cocaína).
O centro médico do Island
Scape funciona das 8h às 10h e
das 17h30 às 19h. A consulta
dentro do horário custa US$
120. Fora, US$ 260. Não se informa se houve atendimentos
por causa de droga ou bebida.
Segunda-feira, 7h30, o navio
aporta. A desaceleração dos baladeiros nas escadas do Island
Scape, onde aguardam o desembarque, é lenta e silenciosa.
Aparentemente, não há mais
ninguém para garantir que ali
só tem gente feliz.
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