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LETRAS JURÍDICAS
Judas depõe no julgamento de Cristo
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
Coincidindo com a proximidade da Semana Santa,
duas informações agitaram o direito canônico e os princípios fundamentais do direito com a notícia de que se descobriu o chamado "Evangelho de Judas". Judas
Iscariotes é apontado, no Novo
Testamento, como sendo o apóstolo traidor do Cristo, denunciando-o aos centuriões romanos que
o procuravam para o prender e
submeter a julgamento. São muitas as dúvidas históricas sobre fatos da vida de Jesus, mas seu julgamento corresponde a um dos
momentos culminantes na fé de
milhões de seres humanos, em todo o planeta.
Não se sabe muito, nestes dias, a
respeito da versão de Judas, com
referência à sua participação nos
últimos momentos da vida de Jesus, intensamente dramatizados
no filme recente de Mel Gibson.
Ao que parece, porém, Judas teria
justificado sua conduta escrevendo que foi solicitada por Cristo.
Independentemente de ser ou não
verdade, um dos pontos fundamentais da ciência jurídica, raramente compreendida pela generalidade das pessoas, é o direito
de defesa. Quando firmada a convicção geral de que o acusado, por
ser evidentemente culpado, deve
ser punido, é muito difícil escapar
do ódio coletivo, que envolve Judas há mais de dois milênios.
Cristo foi vítima do chamado
"clamor público", quando a multidão instruída pelos que se sentiam ameaçados pelas posições do
novo pregador resolveram apressar sua morte.
O que pensar do "Evangelho"
de Judas? Em primeiro lugar, como óbvio, pôr dúvida sobre sua
autenticidade é de elementar
prudência. As disputas sobre a
qualidade informativa dos quatro evangelhos aceitos pela Igreja
Católica e pelas denominações
cristãs são intermináveis. Os mais
de 2.000 anos passados desde a
morte de Cristo, os séculos escoados até que os evangelistas produzissem seus trabalhos, e esses fossem traduzidos, tudo se soma para tornar difícil transformar as
informações contidas nos quatro
Evangelhos, muitas vezes lançados em linguagem simbólica, em
verdade acabada. Por isso mesmo
quando se passa ao texto atribuído a Judas fica claro que a credibilidade pode e deve ser posta em
dúvida.
Se, apesar da cautela, se der
atenção ao referido "Evangelho",
a primeira ponderação, nada
obstante o lado religioso, mas deixado de lado para fins jurídicos, é
ver o que Judas disse em sua defesa. Se há outras provas produzidas em seu favor. Se haveria alguma base para admitir a versão segundo a qual o próprio Cristo,
conformado com a inexorabilidade de sua morte, teria autorizado
seu discípulo e até lhe ordenado
que o identificasse para os soldados romanos, permitindo que o
golpe de seus detratores chegasse
ao fim, com sua condenação à
morte.
Jamais desconsideremos o direito de defesa. É a garantia fundamental dos inocentes. Não se pode
tirar razão dos que, duvidando
do direito de defesa, distinguem a
sorte entre os que têm bons advogados e os que vão para julgamento sem todas as garantias asseguradas pelo contraditório, pelas provas contestadas e assim por
diante. São males graves os da negação da defesa do inocente e da
prova pré-constituída em favor
dos que transformam a areia em
ouro e o ouro em areia, para assegurar a absolvição. Apesar do
mal evidente de tal situação, o direito de defesa deve persistir e
subsistir, mesmo para Suzane von
Richthofen, nada obstante ela
aparente uma frieza na participação na morte de seus pais. Mesmo para o Iscariotes, na infindável revisão das verdades universais, a defesa há de ser possibilitada. É assim que se constrói um
mundo melhor.
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