São Paulo, sábado, 15 de abril de 2006

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LETRAS JURÍDICAS

Judas depõe no julgamento de Cristo

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Coincidindo com a proximidade da Semana Santa, duas informações agitaram o direito canônico e os princípios fundamentais do direito com a notícia de que se descobriu o chamado "Evangelho de Judas". Judas Iscariotes é apontado, no Novo Testamento, como sendo o apóstolo traidor do Cristo, denunciando-o aos centuriões romanos que o procuravam para o prender e submeter a julgamento. São muitas as dúvidas históricas sobre fatos da vida de Jesus, mas seu julgamento corresponde a um dos momentos culminantes na fé de milhões de seres humanos, em todo o planeta.
Não se sabe muito, nestes dias, a respeito da versão de Judas, com referência à sua participação nos últimos momentos da vida de Jesus, intensamente dramatizados no filme recente de Mel Gibson. Ao que parece, porém, Judas teria justificado sua conduta escrevendo que foi solicitada por Cristo. Independentemente de ser ou não verdade, um dos pontos fundamentais da ciência jurídica, raramente compreendida pela generalidade das pessoas, é o direito de defesa. Quando firmada a convicção geral de que o acusado, por ser evidentemente culpado, deve ser punido, é muito difícil escapar do ódio coletivo, que envolve Judas há mais de dois milênios. Cristo foi vítima do chamado "clamor público", quando a multidão instruída pelos que se sentiam ameaçados pelas posições do novo pregador resolveram apressar sua morte.
O que pensar do "Evangelho" de Judas? Em primeiro lugar, como óbvio, pôr dúvida sobre sua autenticidade é de elementar prudência. As disputas sobre a qualidade informativa dos quatro evangelhos aceitos pela Igreja Católica e pelas denominações cristãs são intermináveis. Os mais de 2.000 anos passados desde a morte de Cristo, os séculos escoados até que os evangelistas produzissem seus trabalhos, e esses fossem traduzidos, tudo se soma para tornar difícil transformar as informações contidas nos quatro Evangelhos, muitas vezes lançados em linguagem simbólica, em verdade acabada. Por isso mesmo quando se passa ao texto atribuído a Judas fica claro que a credibilidade pode e deve ser posta em dúvida.
Se, apesar da cautela, se der atenção ao referido "Evangelho", a primeira ponderação, nada obstante o lado religioso, mas deixado de lado para fins jurídicos, é ver o que Judas disse em sua defesa. Se há outras provas produzidas em seu favor. Se haveria alguma base para admitir a versão segundo a qual o próprio Cristo, conformado com a inexorabilidade de sua morte, teria autorizado seu discípulo e até lhe ordenado que o identificasse para os soldados romanos, permitindo que o golpe de seus detratores chegasse ao fim, com sua condenação à morte.
Jamais desconsideremos o direito de defesa. É a garantia fundamental dos inocentes. Não se pode tirar razão dos que, duvidando do direito de defesa, distinguem a sorte entre os que têm bons advogados e os que vão para julgamento sem todas as garantias asseguradas pelo contraditório, pelas provas contestadas e assim por diante. São males graves os da negação da defesa do inocente e da prova pré-constituída em favor dos que transformam a areia em ouro e o ouro em areia, para assegurar a absolvição. Apesar do mal evidente de tal situação, o direito de defesa deve persistir e subsistir, mesmo para Suzane von Richthofen, nada obstante ela aparente uma frieza na participação na morte de seus pais. Mesmo para o Iscariotes, na infindável revisão das verdades universais, a defesa há de ser possibilitada. É assim que se constrói um mundo melhor.


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