|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RUBEM ALVES
Casuística
Um amigo me contou que, em Israel, no "shabat", os elevadores são programados para subir e descer sem parar
|
DEUS DÁ AS ordens no atacado.
Os homens pecam no varejo.
"Casuística": "Exame minucioso de casos particulares e cotidianos em que se apresentam dilemas morais surgidos da contraposição entre regras e leis universais
prescritas por doutrinas filosóficas
ou religiosas e as inúmeras circunstâncias concretas que cercam a aplicação prática desses princípios" (dicionário "Houaiss"). Casuística é isso: traduzir a linguagem do atacado
na linguagem do varejo.
Os intérpretes da lei, hebreus, no
seu esforço para garantir que ninguém pecasse no varejo, trataram de
trocar os mandamentos em miúdos,
nos seus mínimos detalhes. Veja-se
o caso do quarto mandamento do
decálogo, que determina que o sétimo dia deve ser santificado: "Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, mas o sétimo dia é o sábado. Não farás nenhum trabalho..." (Êxodo 20:8-10).
Mas a inteligência do intérprete
da lei pergunta: o que é "obra alguma"? Será possível que uma pessoa,
inocentemente, faça sem saber alguma "obra", desta forma quebrando o
mandamento e incorrendo em pecado? Surge um caso concreto: um
agricultor, num sábado, leva sua enxada de um lugar para outro. Ele não
está trabalhando com a sua enxada.
Está apenas mudando sua localização no espaço. O casuísmo responde: se um outro -que não o dono da
enxada- a transportasse de um lugar a outro, estaria trabalhando não
como agricultor, mas como transportador. Estaria quebrando o sábado. Logo, quando esse transporte é
realizado pelo próprio dono, há um
trabalho que está sendo realizado.
A situação fica clara quando a ferramenta é grande. Mas, e no caso de
ferramentas minúsculas, como as
agulhas que os alfaiates espetam na
sua roupa ou canetas? Eu, que sou
escritor, estarei transgredindo o
quarto mandamento ao carregar no
meu bolso, num dia de sábado, uma
caneta esferográfica, meu instrumento de trabalho?
Ferramenta é ferramenta, grande
ou pequena, em uso ou fora de uso.
Assim, os intérpretes da lei advertem os alfaiates que, antes do pôr-do-sol da sexta-feira, quando o sábado se inicia, é preciso examinar meticulosamente as roupas para ver se
alguma agulha não ficou ali esquecida. Um alfaiate que caminha no sábado tendo uma agulha espetada em
sua roupa está transgredindo o
quarto mandamento, o mesmo valendo para os escritores que levam
nos bolsos suas canetas.
Foi um amigo que me contou. Não
sei se acredito. Vocês que decidam.
Ele estava em Israel fazendo turismo. Aí, ao entrar no elevador, notou
que alguém, talvez uma criança, havia apertado os botões de todos os
andares. Assim ele subiu, parando
em todos os andares intermediários,
porque não era possível desapertar
os botões. Horas mais tarde, querendo descer, foi até o elevador e viu que
a brincadeira se repetira. Todos os
botões estavam apertados. Comentou o fato com um amigo que mora
lá. O amigo explicou: "Hoje é o "shabat". Não se pode fazer trabalho algum. Apertar um botão de elevador
é um trabalho. Assim, para evitar
que os fiéis sejam obrigados a pecar,
apertando os botões dos seus andares, no "shabat" todos os elevadores
são programados para ficar subindo
e descendo sem parar, parando em
todos os andares. Assim, pode-se subir ou descer sem pecar com a ponta
do dedo".
Texto Anterior: Defesa diz não ver problema em depoimento Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|