São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 2008

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RUBEM ALVES

Casuística


Um amigo me contou que, em Israel, no "shabat", os elevadores são programados para subir e descer sem parar

DEUS DÁ AS ordens no atacado. Os homens pecam no varejo.
"Casuística": "Exame minucioso de casos particulares e cotidianos em que se apresentam dilemas morais surgidos da contraposição entre regras e leis universais prescritas por doutrinas filosóficas ou religiosas e as inúmeras circunstâncias concretas que cercam a aplicação prática desses princípios" (dicionário "Houaiss"). Casuística é isso: traduzir a linguagem do atacado na linguagem do varejo.
Os intérpretes da lei, hebreus, no seu esforço para garantir que ninguém pecasse no varejo, trataram de trocar os mandamentos em miúdos, nos seus mínimos detalhes. Veja-se o caso do quarto mandamento do decálogo, que determina que o sétimo dia deve ser santificado: "Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, mas o sétimo dia é o sábado. Não farás nenhum trabalho..." (Êxodo 20:8-10).
Mas a inteligência do intérprete da lei pergunta: o que é "obra alguma"? Será possível que uma pessoa, inocentemente, faça sem saber alguma "obra", desta forma quebrando o mandamento e incorrendo em pecado? Surge um caso concreto: um agricultor, num sábado, leva sua enxada de um lugar para outro. Ele não está trabalhando com a sua enxada. Está apenas mudando sua localização no espaço. O casuísmo responde: se um outro -que não o dono da enxada- a transportasse de um lugar a outro, estaria trabalhando não como agricultor, mas como transportador. Estaria quebrando o sábado. Logo, quando esse transporte é realizado pelo próprio dono, há um trabalho que está sendo realizado.
A situação fica clara quando a ferramenta é grande. Mas, e no caso de ferramentas minúsculas, como as agulhas que os alfaiates espetam na sua roupa ou canetas? Eu, que sou escritor, estarei transgredindo o quarto mandamento ao carregar no meu bolso, num dia de sábado, uma caneta esferográfica, meu instrumento de trabalho?
Ferramenta é ferramenta, grande ou pequena, em uso ou fora de uso. Assim, os intérpretes da lei advertem os alfaiates que, antes do pôr-do-sol da sexta-feira, quando o sábado se inicia, é preciso examinar meticulosamente as roupas para ver se alguma agulha não ficou ali esquecida. Um alfaiate que caminha no sábado tendo uma agulha espetada em sua roupa está transgredindo o quarto mandamento, o mesmo valendo para os escritores que levam nos bolsos suas canetas.

 

Foi um amigo que me contou. Não sei se acredito. Vocês que decidam.
Ele estava em Israel fazendo turismo. Aí, ao entrar no elevador, notou que alguém, talvez uma criança, havia apertado os botões de todos os andares. Assim ele subiu, parando em todos os andares intermediários, porque não era possível desapertar os botões. Horas mais tarde, querendo descer, foi até o elevador e viu que a brincadeira se repetira. Todos os botões estavam apertados. Comentou o fato com um amigo que mora lá. O amigo explicou: "Hoje é o "shabat". Não se pode fazer trabalho algum. Apertar um botão de elevador é um trabalho. Assim, para evitar que os fiéis sejam obrigados a pecar, apertando os botões dos seus andares, no "shabat" todos os elevadores são programados para ficar subindo e descendo sem parar, parando em todos os andares. Assim, pode-se subir ou descer sem pecar com a ponta do dedo".


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