São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

'Botam a gente comovido como o diabo'


Dizer que, ainda que se trate de um samba, deve-se seguir a norma é como usar uma só roupa em qualquer situação

EM SEU ÚLTIMO VESTIBULAR, a PUC-SP abordou o uso da expressão "a gente", num teste baseado nestes versos da canção "Nossa Pátria Mãe Gentil", de Vaguinho e Boneco: "A gente tem que gritar/Não vamos nos acomodar".
No enunciado da questão, afirmava-se que nesses versos da canção "há mistura de pessoas verbais: 'a gente' (terceira pessoa do singular) e 'nós'(primeira pessoa do plural)". Em seguida, vinham a pergunta e as cinco alternativas: "Trata-sede: a) uma característica da linguagem coloquial e, considerando a situação comunicativa, não configura erro; b) um erro, pois, ainda que se trate de um samba, deve seguir o que prescreve a norma culta; c) um acerto, pois em sambas tem de haver essa mistura; d) uma característica da linguagem coloquial e, considerando a situação comunicativa, configura erro; e) uma característica da linguagem coloquial, cujo alto grau de formalidade está adequado para o contexto em que circula". Vamos direto ao ponto: a) atire a primeira pedra aquele que nunca usou "a gente" na linguagem coloquial e até mesmo em alguns escritos; b) atire a segunda pedra aquele que nunca empregou "a gente" com os pronomes "nos" ou "nós" (como em "A gente sabe que ele não nos viu" ou "A gente sabe que ele não olha para nós") ou com os pronomes "nosso", "nossa", "nossos", "nossas" (como em "A gente fez a nossa parte","A gente cuida bem dos filhos").
No português do Brasil, há muito tempo o emprego de "a gente" com valor de "nós" é fato mais do que consumado, seja na fala, seja em textos literários, canções etc.No verbete "gente", o "Aulete" eletrônico define a expressão "a gente" como "a(s) pessoa(s) que fala(m)";"eu, "nós".O exemplo é este: "Professor, a gente queria sair mais cedo hoje". É por essas e outras que não se pode falar em erro quando se usa essa expressão nos contextos citados no parágrafo anterior, caso em que se enquadram os versos da canção "Nossa Pátria Mãe Gentil", nos quais se baseia a questão da PUC.
Já está claro que a resposta é "A", mas talvez seja bom trocar duas palavras sobre as demais opções. A "B" é patética. Dizer que, ainda que se trate de um samba, deve-se seguir a norma culta equivale a dizer que se deve usar um único tipo de roupa, qualquer que seja a situação. Pode ter certeza, caro leitor: em alguma situação (ou em várias), o cidadão estará vestido inadequadamente.
Com a língua, a coisa não é diferente.
Convém notar o caráter "normativo" da alternativa "C" ("...em sambas tem de haver essa mistura": não tem de haver; pode haver). A alternativa "D" é puro nonsense, e a "E" inverte os sinais: "o alto grau de formalidade" não combina com a linguagem coloquial (informal, e não formal).
E a concordância com"a gente"? Como se sabe, no dialeto de muitas regiões do Brasil ocorre "a gente" como se fosse "nós" não só no que diz respeito ao sentido, mas também no que concerne à forma, isto é, o verbo é posto na primeira do plural ("A gente somos"; "A gente queremos" etc.). Essas construções não ocorrem na fala culta urbana, nem nos escritos literários, em que predomina mesmo a terceira pessoa do singular ("Acho que a gente precisa ver o luar" diz uma belíssima canção de Gilberto Gil).
Quando se trata de concordância nominal, a coisa muda de figura, já que é mais do que comum, em diversos registros (da fala e da escrita), a ocorrência da silepse (concordância com o sentido). Vejam se estes versos de Drummond ("Poema de Sete Faces"): "Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo". Notou a concordância (siléptica) entre "a gente" e "comovido"? É isso.

inculta@uol.com.br


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