São Paulo, terça-feira, 15 de maio de 2007

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RUBEM ALVES

O canto gregoriano

É por amor à vocação musical que a igreja tem se esforçado para silenciar os cantores dissonantes, não por crueldade

"DE HARMONICE MUNDI" , as harmonias dos mundos -foi esse o nome que Kepler deu ao livro em que relatou a sua descoberta das três fórmulas matemáticas que exprimem o movimento dos planetas. Por 18 anos ele havia trabalhado até chegar àquele resultado. Para ele era mais que matemática. Era música! Os astros, esferas celestes, tocavam música, música composta pelo Criador. O Criador esperara por 6.000 anos por uma criatura que a ouvisse. Kepler fora o primeiro a ouvi-la.
Lendo "O Som e o Sentido", maravilhoso livro de José Miguel Wisnik, aprendi muitas coisas sobre esse mundo esquecido em que a matemática e música, duas irmãs gêmeas, dançavam. Sabiam os teólogos medievais que a música das esferas celestes era superior à música que os homens inventavam. E que música era essa que fazia audíveis aos ouvidos humanos a música do universo? Era o canto gregoriano. O canto gregoriano imita os astros. Cada esfera celeste é uma nota da escala musical.
Eterna e imutavelmente o canto gregoriano se repete, como convém a uma obra de Deus. O que é completo e perfeito não admite novidades. Novidades são perturbações da ordem, como se algum planeta, enlouquecido, fugisse da órbita perfeita.
Música de novidades é música do tempo imperfeito, tempo do formigamento humano, tempo que ainda não encontrou o seu destino. O canto gregoriano é música do tempo perfeito, tempo que já encontrou o que buscava e que se repete, eternamente. Nas palavras da doxologia: "Como era no princípio, é hoje e para sempre, séculos sem fim, amém".
A alma de Sua Santidade, o papa Bento 16, vive nesse mundo de perfeição musical. Essa é a razão por que ele deseja o retorno do canto gregoriano. A missão da igreja não pode ser outra que a de eliminar os ruídos humanos para que apenas a música divina se faça ouvir. Compreende-se então o repúdio às novas formas de música que invadiram a liturgia após o Concílio do Vaticano, música de planetas enlouquecidos, música de ruídos, do efêmero, das improvisações, de protestos, de sentimentos...
Como admitir novidades nessa música na liturgia se o Criador revelou à igreja, e somente a ela, a sua música? A igreja não pode tolerar cantores desafinados, que rompem as harmonias celestiais cantando cantos que eles mesmos inventaram. Igreja, Babel feliz antes da confusão de línguas, todos falando a mesma língua enquanto se trabalha na construção da torre que haverá de atingir as estrelas. Essa é a missão evangelizadora.
A igreja é a cura para a confusão de línguas, o retorno à monolíngua, tão em harmonia com a monotonia do canto gregoriano. Cada cantor há de se esquecer dos seus sentimentos e pensamentos para se entregar à monolíngua sagrada.
E é por amor à sua vocação musical que a igreja, desde os tempos da Inquisição, tem se esforçado para silenciar os cantores dissonantes, não por crueldade (embora possa parecer), mas por amor à beleza da música dos céus. Os cantores dissidentes têm de ser silenciados para que a música das esferas seja ouvida!
Grande lição essa: o preço da harmonia universal é a renúncia à liberdade individual. Sacrifício, sim, mas pequeno diante da beleza da música de Deus.


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