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RUBEM ALVES
O canto gregoriano
É por amor à vocação musical que a igreja tem se esforçado para silenciar os cantores dissonantes, não por crueldade
"DE HARMONICE MUNDI" , as
harmonias dos mundos
-foi esse o nome que
Kepler deu ao livro em que relatou a
sua descoberta das três fórmulas
matemáticas que exprimem o movimento dos planetas. Por 18 anos ele
havia trabalhado até chegar àquele
resultado. Para ele era mais que matemática. Era música! Os astros, esferas celestes, tocavam música, música composta pelo Criador. O Criador esperara por 6.000 anos por
uma criatura que a ouvisse. Kepler
fora o primeiro a ouvi-la.
Lendo "O Som e o Sentido", maravilhoso livro de José Miguel Wisnik,
aprendi muitas coisas sobre esse
mundo esquecido em que a matemática e música, duas irmãs gêmeas,
dançavam. Sabiam os teólogos medievais que a música das esferas celestes era superior à música que os
homens inventavam. E que música
era essa que fazia audíveis aos ouvidos humanos a música do universo?
Era o canto gregoriano. O canto gregoriano imita os astros. Cada esfera
celeste é uma nota da escala musical.
Eterna e imutavelmente o canto
gregoriano se repete, como convém
a uma obra de Deus. O que é completo e perfeito não admite novidades.
Novidades são perturbações da ordem, como se algum planeta, enlouquecido, fugisse da órbita perfeita.
Música de novidades é música do
tempo imperfeito, tempo do formigamento humano, tempo que ainda
não encontrou o seu destino. O canto gregoriano é música do tempo
perfeito, tempo que já encontrou o
que buscava e que se repete, eternamente. Nas palavras da doxologia:
"Como era no princípio, é hoje e para sempre, séculos sem fim, amém".
A alma de Sua Santidade, o papa
Bento 16, vive nesse mundo de perfeição musical. Essa é a razão por
que ele deseja o retorno do canto
gregoriano. A missão da igreja não
pode ser outra que a de eliminar os
ruídos humanos para que apenas a
música divina se faça ouvir. Compreende-se então o repúdio às novas
formas de música que invadiram a
liturgia após o Concílio do Vaticano,
música de planetas enlouquecidos,
música de ruídos, do efêmero, das
improvisações, de protestos, de sentimentos...
Como admitir novidades nessa
música na liturgia se o Criador revelou à igreja, e somente a ela, a sua
música? A igreja não pode tolerar
cantores desafinados, que rompem
as harmonias celestiais cantando
cantos que eles mesmos inventaram. Igreja, Babel feliz antes da confusão de línguas, todos falando a
mesma língua enquanto se trabalha
na construção da torre que haverá
de atingir as estrelas. Essa é a missão
evangelizadora.
A igreja é a cura para a confusão de
línguas, o retorno à monolíngua, tão
em harmonia com a monotonia do
canto gregoriano. Cada cantor há de
se esquecer dos seus sentimentos e
pensamentos para se entregar à monolíngua sagrada.
E é por amor à sua vocação musical que a igreja, desde os tempos da
Inquisição, tem se esforçado para silenciar os cantores dissonantes, não
por crueldade (embora possa parecer), mas por amor à beleza da música dos céus. Os cantores dissidentes
têm de ser silenciados para que a
música das esferas seja ouvida!
Grande lição essa: o preço da harmonia universal é a renúncia à liberdade individual. Sacrifício, sim, mas
pequeno diante da beleza da música
de Deus.
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