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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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DIREITO CIVIL

Lei que criou cadastro único nacional não foi regulamentada

Carteira de identidade caducou no ano passado

MARI TORTATO
DA AGÊNCIA FOLHA, EM CURITIBA

Se toda lei brasileira fosse respeitada, a carteira de identidade que o cidadão apresenta no banco para sacar seu dinheiro ou ao policial que o aborda numa revista não teria nenhum valor.
Se toda lei editada fosse para valer, a carteira de todos os brasileiros teria vencido em 8 de abril do ano passado, e com ele uma porção de outros documentos que a maioria leva na carteira.
Sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997, a lei 9.454 instituiu um único registro de identidade civil para os brasileiros e limitou a validade dos atuais documentos civis a cinco anos. O prazo venceu em abril de 2002 sem que a lei fosse regulamentada.
O governo não tirou a lei do papel nem para definir o órgão que centralizaria a criação do cadastro nacional único, como prevê o artigo 3º, mas a lei está em vigor.
"Está vigente, mas não tem eficácia", afirma o presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Rubens Approbato Machado, 69. Ele explica que, ao depender de norma regulatória, leis como essa não são auto-aplicáveis, e exemplifica com normas da Constituição de 1988 que, passados 15 anos da promulgação, ainda não são aplicáveis por falta de regulamentação.
O jurista paranaense René Dotti defende a revogação imediata da lei e considera que as carteiras e toda a documentação civil derivada continuam em vigor porque foi o governo quem não cumpriu a sua parte. "É o maior paradoxo: o presidente da República assina a lei, manda cumpri-la e ele é o primeiro a não cumpri-la", diz. Dotti integrou a equipe que elaborou o projeto do novo Código Penal.
Em Blumenau (SC), o procurador da República João Marques Brandão Néto patrocina uma ação civil pública propondo à Justiça que reconheça a inconstitucionalidade do artigo 6º da lei. O artigo diz: "Em cinco anos da promulgação desta lei, perderão a validade todos os documentos de identificação que estiverem em desacordo com ela".
"A rigor, todos os documentos estão sem validade desde 8 de abril do ano passado", disse. A lei foi assinada em 8 de abril de 97 e publicada no dia seguinte no "Diário Oficial" da União.
Segundo o procurador, a lei fere o princípio da razoabilidade, ou seja, não foram fornecidas à população condições para a substituição dos documentos.
Em 2001, o cadastro único chegou a ser argumento do presidente para vetar iniciativas do Senado de ampliar o número de carteiras de identidade especiais autorizadas a determinados profissionais, como advogados e jornalistas.
Com uma dose de ironia, o presidente da OAB afirma que não pretende aposentar o documento de mais de 50 anos que continua utilizando.
Iniciativa do senador Pedro Simon (PMDB-RS), a lei do registro único passou no Congresso sem gerar polêmica, embora considerada por advogados e sociólogos como a mais invasiva das leis sobre a privacidade do cidadão.
Para Approbato, o cadastro único "é o controle que Orwell [George Orwell] previa no livro "1984" [o clássico de ficção em que o Grande Irmão controla todos e tudo]. Se tivermos um documento único, seremos vigiados pelo poder público. Essa lei esbarra no princípio das liberdades democráticas", afirma.
A ficção de Orwell também é o argumento do deputado federal Luiz Antonio Fleury Filho (PTB-SP) para defender a extinção da lei. Na legislatura passada, ele foi o relator de uma proposta do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) nesse sentido. "Com um único número em todos os documentos, e durante toda a sua vida, será possível a qualquer um invadir até seu prontuário médico", diz.
Por ter passado por todas as comissões na legislatura anterior, a lei do registro único está para voltar à pauta do Congresso. Se depender do empenho do senador Simon, voltará a ser aprovada. No final do ano passado, o senador apresentou um novo projeto, propondo a renovação do prazo.
O argumento de Simon para defender a criação do registro único é acabar com a chance de uma pessoa poder tirar até 27 carteiras de identidade (nos 26 Estados e no Distrito Federal). Approbato diz que basta uma rede de comunicação entre os Estados para eliminar o problema.

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