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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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GILBERTO DIMENSTEIN

Brasil vira provão de Lula

A passeata de servidores públicos contra a reforma previdenciária foi uma farsa -e a prova disso está em uma pesquisa do IBGE divulgada no dia seguinte ao protesto.
Durante a manifestação realizada na quarta-feira passada em Brasília, os servidores atacaram o PT, acusando-o de estar a serviço dos poderosos e contra os direitos dos trabalhadores. Tentaram vender a idéia de que os servidores representam o bem na guerra contra o mal do mercado.
Desfaz-se rapidamente essa farsa, embalada pelos radicais do PT, com a leitura da pesquisa do IBGE, que mostra que, sai governo, entra governo, o nível de distribuição de renda permanece igual. No topo da pirâmide, de acordo com a pesquisa, aparecem -e não poderia ser diferente- os patrões.
Mas, em segundo lugar, estão os servidores civis e militares, beneficiados por um rendimento bem superior à média salarial dos trabalhadores. Apenas uma minoria deles será obrigada a descontar o valor de suas aposentadorias caso a reforma seja aprovada, corrigindo um óbvio absurdo: o de viver, na aposentadoria, com um valor maior do que aquele de que dispunha na ativa.
Além de estarem no topo da pirâmide de renda, eles se aposentam mais cedo, com o valor do salário integral, e aí já não descontam mais imposto. De resto, vivem uma estabilidade no emprego paradisíaca diante da insegurança geral. O custo desse indiscutível privilégio são os bilionários buracos no Orçamento bancados pelo contribuinte.
Na sexta-feira, soubemos que, apesar da "paradeira" econômica, a arrecadação de impostos federais bateu um recorde. Atingiu, em maio, R$ 22,1 bilhões. Não é necessário ser um expert em questões fiscais para suspeitar de que algo esteja doente em um país em que os empresários lucram menos e se atolam em dívidas e os trabalhadores ganham menos e perdem empregos, enquanto o governo arrecada mais.
Nunca a sociedade, onde estão aqueles que vivem a insegurança do desemprego e da violência, transferiu tanto dinheiro para seus governantes -essa é, de longe, a principal questão política brasileira, e só não explode por acomodação ou por ignorância da classe média.
A combinação da escassez de possibilidades com a abundância de expectativas sociais deixará cada vez mais acuados tanto os grupos empresariais que são ajudados com facilidades fiscais e os segmentos financeiros que ganham dinheiro fácil na crise como o próprio governo, incansável sugador de recursos.
Novidade mesmo é que essa descoberta venha sendo realizada, no Brasil, pela esquerda, que começa a perceber que rombos orçamentários para manter privilégios públicos são tão graves para o bolso do trabalhador como a taxa de juros.
Mais: o que se imagina ser um direito nem sempre é a melhor proteção do trabalhador. E acaba não dando direito a nada. Assessores próximos do presidente Lula admitem, ainda que reservadamente, que manter a inflexibilidade dos direitos trabalhistas talvez não seja o melhor caminho para gerar empregos e enfrentar a falta de recursos da Previdência.
Tal dúvida é reforçada pela pesquisa do IBGE: 54% da população ocupada não contribuiu para a Previdência. Significa, no presente, menos dinheiro arrecadado e, no futuro, milhões de pessoas sem nenhuma proteção. Muitas vezes, os sindicatos representam apenas os trabalhadores de carteira assinada, a elite dos trabalhadores.
Políticos e intelectuais que se imaginam de esquerda, talvez saudosos de bandeiras transgressoras, talvez incomodados com a falta de charme do situacionismo, acreditam estar defendendo os trabalhadores. No entanto, como mostram os números, somente dão sustentação ideológica a privilégios da elite.
Há muita gente que já deve estar percebendo (e temendo) uma nova regra. Na busca de recursos para investimentos sociais, o trâmite de recursos será cada vez mais transparente. E os embates por recursos, cada vez mais duros.
Simplificar, dividir o mundo entre bons e maus, faz parte do mundo das bravatas, porém a realidade fora dos palanques é complexa e cheia de nuances. Lula que o diga: "As coisas são muito mais difíceis do que a gente imaginava".
PS - Quando eu questionava neste espaço se Lula estava adequadamente preparado para governar -não pela falta de diploma, mas por não mostrar conhecimento sobre a complexa realidade que enfrentaria-, diziam que se tratava de preconceito. Ele está pagando por esse despreparo: acreditava de verdade que bastaria vontade política para que o Brasil voltasse a crescer e a distribuir renda. Nem sequer conseguiram implementar direito o programa contra a fome, mas vamos reconhecer que o aprendizado dele é rápido e para bem melhor.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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