São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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DANUZA LEÃO

Realidades

Tem muita coisa estranha neste mundo, e o pior é que, com o tempo, a gente se habitua a elas (quase) todas. A estar com um braço no gesso, por exemplo.
Estou com o meu há sete semanas: luxação no cotovelo, que dói mais que todas as dores de cotovelo de amor que se tenha tido (juntas). Além disso, fica-se completamente dependente para as coisas mais básicas, tipo vestir uma camiseta, puxar o zíper do jeans, dar o nó no cordão do tênis, cortar um pedaço de carne. E o banho? Ler jornal ou um livro com uma mão só é um problema -tente-, fica difícil raciocinar e tomar decisões e ainda tenho que concordar quando ouço "você ainda teve sorte de ter sido o esquerdo"; a vida é dura.
Pois sabe que estou me habituando? Mas amanhã vou tirar o gesso e estou morrendo de medo de ficar insegura sem ele. Mas ao mesmo tempo já estou tão animada que resolvi escrever com dois dedos, apesar de ser difícil e lento: os pensamentos são infinitamente mais velozes do que os gestos físicos, e estou na frente do computador há horas -e ainda com o gato no colo me atrapalhando.
Voltando ao início, o homem se habitua a tudo. Uns passam fome por pobreza, outros pagam para passar fome num spa; uns passam oito horas por dia carregando peso: sacos de batata, móveis, até pianos. Outros pagam para fazer coisas bem parecidas -esportes- e poderem um dia, quem sabe, disputar uma Olimpíada.
Com as dores da alma também se acostuma até porque, se não fosse assim, estaríamos todos mortos; e as de amor, nem se fala. Dessas, aliás, a gente costuma se esquecer e depois pensar "ai, como eu era boba". Mas para todos os sofrimentos existe um consolo: pensar que no fim do dia se vai poder esticar o corpo e dormir. Dormir, seja lá como for, esquecer, seja lá do que for, e descansar. É preciso descansar.
É preciso? Nem todos; outro dia ouvi a história de Jailson dos Santos Soares, 21 anos. Sua vida é assim: na segunda-feira às 8h da manhã ele entra na faculdade e estuda até o meio-dia; de lá, sacolinha na mão, vai direto para o trabalho que começa às 14h, num serviço de resgate na Rio/São Paulo (resgate é o socorro aos que se acidentam na estrada). Passa o dia, vira a noite, na terça de manhã toma um chuveiro, troca de camisa e segue direto para a faculdade. Termina a aula ao meio-dia de terça e volta para o resgate, onde fica até a manhã de quarta-feira. Para quem se perdeu: ele vai direto, acordado, da segunda de manhã até a quarta de manhã, quando mata a aula para poder dormir. Na manhã seguinte (quinta) recomeça e só volta para casa no sábado de manhã. Simplificando, ele dorme numa cama três noites por semana: às quartas, aos sábados e aos domingos. Como agüenta? Ora, se acostumou.
Dá vontade de chorar; deve ser desesperador não poder cair na cama no fim do dia. Mas Jailson não chora nem se desespera: ele, que queria ser médico, vai se formar em enfermagem, conta que tem uma namorada e ainda diz que adora o que faz.
P.S.: Se você troca de canal a cada vez que começa o noticiário de Atenas, não se sinta cometendo um crime hediondo; saiba que não está só e que conta com uma alma gêmea que faz a mesma coisa: eu.
Na abertura da Olimpíada, disputando -com grandes chances de vitória- a medalha de ouro de uniforme mais feio de todas as delegações, está o Brasil.
Aquele blazer cor de abacate sobre o saiote com o desenho do calçadão de Copacabana, em cores, estava medonho. Se era para ser verde, que ao menos combinasse com o verde da bandeira.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br

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