São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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DANUZA LEÃO

E agora?

E la está casada há 25 anos, gosta do marido e é feliz. Eles se dão bem, são bons companheiros e a vida corre mansa; mansa, boa e morna.
Só que depois de tanto tempo algumas coisas não acontecem mais: o romance, o coração disparado, as transas enlouquecidas. É um casamento feliz, calmo e sereno, tão sem sobressaltos que ela foi perdendo certas vaidades. Dá-se ao luxo de ficar em casa bem à vontade, com uma calça larga, raramente se maquia, salto alto nem pensar e passou de manequim 38 para 42/44, "conforme a modelagem", como gosta de dizer. É uma mulher tranquila, que não bota rímel para jantar em casa com o marido -e pra quê? Tem a mais perfeita consciência de que a vida anda sem graça, mas está bom assim mesmo e sempre soube que não se pode ter tudo. Só que, às vezes, mesmo nas existências mais pacatas, coisas acontecem.
O casal ia jantar em casa de amigos; com uma certa preguiça, ela se pintou, botou um salto alto e, antes de sair, lembrou que precisava comprar um remédio. Como o "Jornal Nacional" estava começando e marido que é marido tem que ver, ela resolveu descer rapidinho; e aí, na farmácia, encontrou um homem.
Ele olhou para ela daquele jeito que não deixa a menor dúvida, coisa que há muito tempo não acontecia; ela percebeu e ficou perturbada, coisa que há muito tempo não acontecia. Tão perturbada que voltou voando para casa, sabendo que o vulcão -aquele-, que considerava mais do que extinto, estava bem vivo. Sentiu o sangue correndo nas veias, a vida entrando por todos os poros e, enquanto o marido terminava de ver a TV, tomou dois uísques e teve um pensamento traidor (o primeiro de uma série): "Aquele homem não vê o "Jornal Nacional'".
Há anos achava que a vida para ela já tinha passado e que ter pequenas emoções como vibrar com as alegrias dos filhos, sofrer com seus sofrimentos e achar uma relativa graça nos netos já estava de bom tamanho; de repente, percebeu que o outro mundo, do qual havia se esquecido, continuava existindo e gostou da idéia. Gostou muito. Nessa noite, seus olhos brilharam como havia muito tempo não acontecia e, na manhã seguinte, acordou outra pessoa. Teve sonhos: sonhou com um homem, um qualquer, e ficou maravilhada. Nem se lembrava mais direito da cara do tal da farmácia, mas descobriu que estava viva -coisa da qual havia se esquecido há muito tempo. Que acontecimento; e agora? Pois é, e agora?
Não quer mudar nada -em princípio-, não tem a menor intenção de arranjar um caso -em princípio- e sabe perfeitamente que qualquer mulher com o olho brilhando arranja um homem na esquina. Mas não acha justo continuar vivendo como uma quase morta; como é que alguém, em qualquer idade, pode achar que a vida está encerrada, que o futuro não vai ser mais do que um jantarzinho gostoso, ir a um cineminha às vezes, esperar que os filhos telefonem, com um marido que não desperta nela rigorosamente nada, além de uma grande amizade? Um marido para quem ela não faz charme, não compra uma camisola mais sexy e com quem vai para a cama como se estivesse só?
Se não gostasse dele, se tivesse raiva, se ele aprontasse, fosse uma presença desagradável, seria fácil. Mas não: ele é legal, tudo que pode haver de bom, depois de 25 anos de convivência.
Aos 53, ela fez a grande descoberta: que ainda existe como mulher. Só que não tem coragem de encarar novos rumos, trocar a segurança pela aventura e por uma possível solidão futura.
E se pergunta, curiosa: na próxima vez que for à farmácia, bota um salto alto e um rímel ou se esconde atrás de uma blusa bem larga e uma sandalinha para se proteger, não ser olhada por ninguém e não ter tentação de nada? Tão mais fácil continuar como estava; feliz e conformada, como sua mãe gostaria.
Está vivendo um momento de decisão que é só dela e sabe que para certas coisas não se pode pedir ajuda de amiga nem de analista.
Mulher é um bicho perigoso, e com elas ninguém sabe o que pode acontecer.
No caso específico, nem ela.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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