São Paulo, quinta-feira, 15 de setembro de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

Caçar e cassar

"Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. / Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado / e achou uma barbaridade."
Reconheceu, caro leitor? É a íntegra do poema "Anedota Búlgara", presente em "Alguma Poesia", primeiro livro (de 1930) de Carlos Drummond de Andrade. Intemporal, o poema se refere aos poderosos que, representados no texto pelos czares da antiga Rússia, são hipócritas e absolutamente indiferentes à sorte da patuléia (como diz o grande Elio Gaspari).
Pois de vez em quando poderosos (e ex-poderosos) se estranham, e o resultado é uma verdadeira caçada, que às vezes acaba em cassação ou em ergástulo (belo termo do juridiquês, que na língua do povo se traduz mesmo por cadeia, cana, xilindró, xadrez).
Chegamos ao nosso busílis, isto é, ao xis do problema: os homônimos, que nada mais são do que palavras que se pronunciam da mesma forma, mas se escrevem de modo diverso (e, obviamente, têm significado também diverso).
O verbo "caçar" vem do latim vulgar "captiare", que, por sua vez, vem da forma clássica "captare", que é também a raiz de "captar" e "catar". Em todos os termos está presente a noção de "agarrar", "tomar", "apanhar". O homônimo "cassar" também vem do latim ("cassare", que significa "tornar nulo, sem efeito").
O curioso é que não raro (ato falho?) os nossos jornais trocam "cassar" por "caçar", no texto e nos títulos, e fazem, por exemplo, um tribunal ou uma casa parlamentar "caçar" uma liminar, um mandado de segurança ou o mandato de um deputado. Há poucos dias, a Folha publicou este trecho: "Para garantir a aprovação do projeto de lei 2.401 e caçar o poder da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança...". No lugar de "caçar", leia-se "cassar".
Pois bem, já que falamos de homônimos, convém aproveitar a ocasião para estender a conversa a outros casos de palavras que têm pronúncia igual ou parecida, mas apresentam grafia e significado diferentes. No parágrafo anterior, empreguei uma dessas duplas ("mandado" e "mandato", que muita gente boa confunde).
O mandato é uma delegação, ou seja, uma autorização ou procuração que alguém (o eleitor, por exemplo) confere a outrem (um senador, deputado, prefeito, presidente, governador etc.) para agir (honestamente, supõe-se) em seu nome. O mandado é simplesmente uma "ordem escrita que emana de autoridade judicial ou administrativa" ("Aurélio").
Outra dupla perigosa é formada por "seção" e "sessão". A seção (que é o ato de secionar, isto é, de cortar, fracionar) é um segmento, uma parte de um todo. É por isso que se trabalha numa seção de peças, por exemplo. O termo "secção" é absolutamente equivalente a "seção", por isso é possível seccionar ou secionar, fazer o seccionamento ou o secionamento (de uma reta, por exemplo).
A sessão é o "tempo ou período em que uma assembléia, um congresso, um corpo deliberativo ou consultivo se mantém em reunião, estudando, discutindo, resolvendo ou deliberando acerca de fatos..." ("Houaiss").
Enquanto escrevo este texto, desenrola-se a sessão da Câmara que trata da possível cassação de Roberto Jefferson, aquele que denunciou a cessão de dinheiro do PT para o PTB. Ai, ai, ai... É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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