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Guilherme de Pádua, livre há 7 anos, diz se sentir preso
Ele cumpriu 1/3 da pena de 19 anos pelo assassinato de Daniella Perez; mora hoje em BH, tornou-se evangélico e está casado há 7 meses
Em entrevista à Folha, ex-ator conta levar vida restrita por medo de ser agredido
PAULO SAMPAIO
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE
O ex-ator Guilherme de Pádua não quer mais nada com a
carreira artística, mas desconfia que vai ser famoso para o
resto da vida.
Condenado a 19 anos de prisão pelo assassinato da atriz
Daniella Perez, sua colega de
elenco na novela "De Corpo e
Alma" (TV Globo, 1992), Guilherme cumpriu um terço da
pena, foi libertado há cerca de
sete anos, mas até hoje, ele diz,
sai pouco de casa e, quando o
faz, sente um frio na barriga.
"Continuo preso. Fui uma espécie de exemplo de justiça superexposto pela mídia, em um
país repleto de impunidade. A
verdade é que fiz bobagens,
mas sou inofensivo, e por isso
as pessoas não têm medo de me
agredir na rua. Já chegaram a
me cuspir no rosto, em um
shopping. Se eu fosse um bandido de verdade, um Marcola,
você acha que alguém gritaria
"Assassino!" para mim?"
Aos 36 anos, Guilherme leva
uma vida bastante restrita para
quem sonhou em ser astro da
Globo. Voltou para Belo Horizonte, sua cidade natal, tornou-se fiel da igreja evangélica batista da Lagoinha, localizada
em um bairro de classe média
baixa, trabalha na informatização do templo e casou-se há sete meses com uma colega de
culto, a produtora de moda
Paula Maia, 22.
Não dá entrevistas: diz que
tem "trauma" de imprensa. A
Folha levou alguns dias para se
aproximar, incógnita, dele.
"Todo mundo disse o que
quis de mim: teve um taxista
que me reconheceu como o assaltante que deu um tiro no vidro do carro dele, quando eu já
estava há um ano na cadeia. Como é que ele não me reconheceu antes, na novela das oito?
Depois, disseram que eu era
"leopardo" [integrante de um famoso show de striptease de rapazes no Rio]. Você acha que alguém veio saber de mim se eu
fazia mesmo o show? Imagina:
vou morrer "leopardo'".
Guilherme pode não ser o assaltante do táxi nem jamais ter
trabalhado no show dos "leopardos". Mas o crime pelo qual
foi condenado tornou-se tão
emblemático que rivalizou em
audiência com o impeachment
de Fernando Collor.
Daniella foi encontrada em
um matagal ermo de Jacarepaguá, zona oeste do Rio, a três
dias do réveillon de 1992, com
16 perfurações no pescoço, tórax e pulmões -consumadas a
golpes de tesoura. Um crime
"passional" clássico, que envolveu Guilherme e sua mulher na
ocasião, Paula Thomaz, então
com 19 anos; ela estava grávida
de quatro meses e também foi
condenada a 19 anos de prisão.
Um crime, várias versões
Surgiram diversas versões
para tentar explicar o homicídio. Guilherme mantém a que
contou no tribunal: ele teria
atraído Daniella até o local do
crime para provar a Paula, escondida no carro, que não estava tendo um caso com a atriz.
Mas, afinal, estava?
Ele arqueia a sobrancelha e
faz um meneio de cabeça, sem
responder. "Não vou entrar em
detalhes. Você vai ficar com o
bico seco, mas algumas coisas
eu não vou dizer."
Continuando: a dada altura,
já fora do carro, as duas começaram a se agredir, e ele tentou
apartá-las, segurando Daniella
com o braço em torno de seu
pescoço (no movimento de
uma "gravata") e afastando
Paula com a outra mão.
"De repente, o lado de cá [de
Daniella] pesou. Entende? Eu
estava nervoso, não controlei a
força no braço, e ela caiu desacordada", explica ele.
E as tesouradas?
"A outra [ele não fala o nome
de nenhuma das duas; agora é
Paula] ficou desesperada, fora
de si, e, no pânico, teve a idéia
de forjar um crime cometido
por um fã alucinado."
E por que ele não contou essa
versão no dia seguinte? [A princípio, ele negou de várias maneiras o crime -chegou a ir ao
velório e prestar condolências à
família da atriz. Mas a polícia tinha a placa do carro, anotada
por uma testemunha, e o chamou para depor, alegando que
muitos artistas estavam fazendo o mesmo. Encurralado, ele
acabou assumindo a autoria do
crime sozinho. Por quê?]
"Ela [Paula] estava grávida,
eu quis preservá-la. Mas depois
que nosso filho nasceu, não
achei justo pagar pelo que ela
fez e continuar ouvindo-a negar sua participação."
Procurada pela Folha, Paula
Thomaz não foi encontrada:
seu telefone no Rio, segundo
gravação da Telemar, "não está
recebendo chamadas". Ela e
Guilherme não se falam, e, de
um tempo para cá, ele não tem
visto o filho Felipe, 14.
"Faço tudo para fugir de confusões. Corro de discussão", resume Guilherme.
O advogado de Paula Thomaz, Carlos Eduardo Machado,
diz que sua cliente não fala com
a imprensa nem faz fotos, "para
evitar mexer em uma ferida dolorosa para todos".
Sarna e dor de dentes
Há quase sete anos em liberdade, dez sem dar entrevistas,
ele conta que, na cadeia, pegou
sarna, micose, dividiu a cela
com um tuberculoso e sofreu
com dores de dentes "sem a
mais remota possibilidade de
ser atendido por um dentista".
Foi abusado sexualmente?
"Não. Só é estuprado quem
estupra. Graças a Deus não tive
problemas porque nunca fui
dedo-duro, um defeito imperdoável na prisão. Quem fala demais apanha até sair."
Como se ocupava? "No início, achei que não fosse suportar. Durante um ano eu saí na
capa -não é lá dentro, é na capa!- dos principais jornais. Os
presos diziam: "Você tá no mentiroso de novo". Mentiroso é o
apelido de jornal na cadeia."
Apesar de um pouco mais
gordo ("tenho o mesmo peso da
época da TV, 88 kg para 1,77 m,
mas antes era só músculo"), o
rosto é praticamente igual; apenas os cabelos pretos estão
mais compridos, mas não há linhas que denunciem amargura
ou ressentimento. Sua voz só se
altera quando ele fala das "testemunhas falsas" (como o motorista de táxi) ou da dificuldade que tem de recomeçar a vida.
"Não paguei o que eles determinaram? Paguei. Tudo o que
me mandaram na cadeia, eu
obedeci. "Abaixa ali; levanta;
abre os braços; deita no chão
sem roupa." Só não morri porque ninguém teve a idéia de me
mandar dar um tiro na cabeça."
Mas um dia, logo que chegou,
pensou em suicídio: "Olhei para uma torneira alta na cela e
me passou pela cabeça amarrar
ali a calça e me enforcar. Mas aí
pensei nos meus pais: já tinha
dado desgosto suficiente a
eles", diz Guilherme, que é filho
temporão de um professor universitário aposentado e de uma
dona-de-casa, tem três irmãos
e foi criado em boas escolas.
Repercussão na família
A irmã mais velha, Simone,
50, conta que, desde o episódio
fatídico, a família nunca mais
foi a mesma: "Éramos pessoas
comuns, sem tragédias em nossa história. Não conseguia
identificar aquele monstro exposto na mídia com o irmão
que conhecia desde que nasceu.
Não tínhamos preparo para o
bombardeio que se seguiu."
Simone diz que, além do sofrimento óbvio, a família arcou
com a "indescritível" repercussão. "Quando me separei do
meu marido, uma revista publicou que "a irmã de Guilherme
de Pádua pegou o marido transando com a mãe dela". Um dia,
a multidão de repórteres era tamanha na porta da casa do meu
pai que precisei sair com ele,
deprimido e dopado, na mala
do carro", lembra.
No dia em que deixou a cadeia, Guilherme conseguiu fugir da imprensa e hospedou-se
na casa de um amigo no Rio.
Comprou uma passagem de
avião para Belo Horizonte, mas
só para despistar os repórteres.
Viajou de carro com os pais.
"Jesus faria isso?"
Guilherme dá a entrevista no
terceiro dia de contato com a
reportagem, em um restaurante chamado Parilla, no mercado
do Cruzeiro (zona sul de Belo
Horizonte). Famoso por servir
carne uruguaia com batatas cobertas com queijo gorgonzola, o
lugar é bem freqüentado sem
ser considerado sofisticado.
Nessa noite, uma quinta-feira,
está praticamente vazio por
volta das 21h30.
Além dele, estão na mesa sua
mulher, Paula, e a irmã dela,
Roberta. Todos tentam converter o repórter -especialmente
Guilherme, que, desde o início,
fala muito em Jesus.
Ele conta que virou evangélico num momento em que, diz, a
religião era a única alternativa.
"Toda vez que saía da prisão,
transferido, ou para ser julgado, havia uma multidão me esperando para xingar. Jogaram
até cocô em mim. No meio daquilo tudo, estavam sempre
dois ou três crentes com a Bíblia, pregando a paz. Eu os
achava uns malucos, mas quem
mais me tratava como gente?"
Em suas tentativas de converter os outros, diz que ele
"era assim também". "Eu saía
com três mulheres por noite,
traía a minha e ria dos crentes.
Achava-os uns bobões..."
Naquela época, diz, recém-chegado de Belo Horizonte no
Rio, malhadão, baladeiro, ele se
jogou nas noites cariocas. "Eu
era doidaço", afirma.
Usava cocaína?
"[Relutando] Fiz tudo o que
não presta. Não vou falar mais
do que isso."
O que, exatamente, é algo que
"não presta"?
"Para saber, você tem de perguntar: "Jesus faria isso?'"
Ele e Paula repetem: "A loucura para os homens é a sabedoria para Deus. E a sabedoria
dos homens é a loucura para
Deus". Eles frisam: "Mas só vale para coisas do bem".
Por exemplo? "Você acha
uma loucura não ter relação sexual antes do casamento? Então: isso é sabedoria para
Deus", prega Guilherme.
"Ele é o meu bebezão"
Morena, magra, 1,65 m, cabelos lisos e longos, Paula conheceu o marido em uma confraternização de crentes na churrascaria Porcão. Deu o telefone
e Guilherme ligou no mesmo
dia, à noite. "Ficamos até umas
três da manhã conversando."
Guilherme contou tudo sobre o crime? (Ele interfere: "Cara, ela não vai falar disso').
"Sim, a gente conversou..."
Não teve medo? "No início,
achei que não daria conta de
carregar esse fardo com o Gui.
Hoje vejo que não tinha homem melhor para me casar.Tenho vontade de pegá-lo no colo,
protegê-lo, é o meu bebezão."
Filha de um empresário morto aos 42 anos durante uma cirurgia cardíaca, Paula mora
com Guilherme em um apartamento de 70 metros quadrados
da família dela, no Sion, um
bairro de classe média de Belo
Horizonte. Guilherme não paga aluguel ("nem poderia") e
não revela ("tenho vergonha")
o salário na igreja.
Por vontade de Paula, que
não comemorou seus 15 anos
porque o pai tinha acabado de
morrer, o casamento foi celebrado com festa para 300 pessoas no salão de um hotel. Apesar de terem tentado manter
segredo, um funcionário do
cartório espalhou a notícia.
"Você acredita que teve uma
enquete na TV para saber se eu
tinha o direito de me casar?",
conta Guilherme.
Alguns jornalistas se hospedaram no hotel, mas ninguém
conseguiu entrar na festa.
"Os seguranças eram da igreja e não se corromperam. Aliás,
a gente contratou os serviços e
depois viu que todas as empresas eram de evangélicos: fomos
abençoados com descontos
maravilhosos", contam.
Longe dos olhos...
A experiência do casamento
com uma crente, diz Guilherme, foi transformadora. "Você
não sabe como a mulher evangélica é muito melhor. Eu estou
amando pela primeira vez."
O ex-mulherengo ressalva,
porém, que não basta amar a
própria mulher. É preciso não
cobiçar as outras. "Não é simples: eu me doutrino para não
perder a disciplina." Como?
"A cobiça é o quê? O olho. Então, pra que eu vou acessar um
site de mulheres peladas, com
aquelas gostosas de quatro? Pra
quê, se eu tenho uma mulher
linda em casa?"
Sua índole mudou? "Não. O
evangélico tem consciência de
que a carne ministra contra o
espírito e que é preciso conter
isso. Quando você me rondou
para dar a entrevista e pensei
que poderia ser mais um repórter disposto a fazer o mal, meu
primeiro ímpeto foi te odiar."
Você se considera um assassino? "Andei fora do caminho
de Deus. Na nossa igreja não
existe pecadinho e pecadão.
Todos estão perdoados, a partir
do momento do batismo, mas
perdoados por Deus. Na rua,
pode-se continuar a pagar..."
Enquanto paga, ele se tranqüiliza com uma certeza inexorável: "Daqui a cem anos, tudo
estará resolvido".
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