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PASQUALE CIPRO NETO
"Liberdade! Liberdade! Abre as asas..."
O bom leitor é aquele que trafega com desenvoltura pelo maior número possível de registros lingüísticos
HÁ DOIS OU TRÊS ANOS, escrevi
sobre o significado da palavra "república" (do latim
"res publica", isto é, "coisa pública").
Não podemos esquecer que 15 de
novembro é o dia da Proclamação da
República. Lamentavelmente, a data serve apenas para que aeroportos,
bares e estradas se entupam (e para
que haja demonstrações explícitas
de que ainda vivemos num fazendão
chamado Brasil). A idéia do que de
fato é uma república ainda está longe de boa parte da população e de
significativa fatia dos senhores dos
três poderes da nação.
Não sou dado a hinos, bandeiras,
patriotismo barato etc., mas, diante
do cada vez mais evidente fato de
que nossa república é de araque, resolvi revisitar o "Hino à República",
que cantei (compulsoriamente)
muitas vezes na escola primária e na
secundária. Lembrava-me da melodia e de parte da letra ("Liberdade!
Liberdade! / Abre as asas sobre nós!
/ Das lutas na tempestade / Dá que
ouçamos tua voz!"), mas o grosso do
texto tinha ido embora da mente.
Relido o poema, vi que o grande
poeta parnasiano Olavo Bilac (o autor da letra -a música é de Francisco Braga) fantasiou. Não havia e ainda não há o que ele descortinava:
"Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre
país... / Hoje o rubro lampejo da aurora / Acha irmãos, não tiranos hostis. / Somos todos iguais! Ao futuro /
Saberemos, unidos, levar / Nosso
augusto estandarte, que, puro, / Brilha, ovante, da Pátria no altar".
O leitor talvez não saiba o significado de "ovante" ("vitorioso",
"triunfante", "jubiloso"), mas isso é
o de menos. Um bom dicionário resolve o problema. O de mais é captar
a mensagem, o que inclui destrinçar
a sintaxe do texto (neste caso, de um
autor parnasiano, por isso mesmo
fascinado pelo rigor formal, pelos
bordados sintáticos etc.). Qual o papel, por exemplo, da expressão "Ao
futuro"? Trata-se de uma exortação
(ato de exortar, que é sinônimo de
"encorajar", "incitar")?
Não, caro leitor. Não ocorre aí nenhuma incitação, convite, chamamento, apelo ou exortação. Se fosse
reescrita na ordem direta, a passagem que começa em "Ao futuro" teria mais ou menos esta redação:
"Unidos, saberemos levar ao futuro
nosso augusto estandarte, que, puro,
brilha ovante no altar da Pátria".
E qual é a ordem direta do trecho
que começa em "Nós nem cremos
que..."? Vamos lá: "Nós nem cremos
que outrora tenha havido escravos
em tão nobre país...". Valendo-me
do assunto da semana passada (as
locuções com "haver", "existir" etc.),
permito-me perguntar por que Bilac
escreveu "tenha havido" e não "tenham havido"? Porque, como afirmei na semana passada, os verbos
auxiliares não têm vontade própria;
seguem a vontade do verbo principal, que no caso é "haver", com o
sentido de "existir". Nesse caso, nada de plural, lembra? Vamos lá:
"...que tenha havido escravos", "que
tenham existido escravos". Agora, se
Bilac me permite, ainda há escravos
neste tão nobre, digo, vil país. E de
todos os tipos...
A esta altura, alguém talvez diga
que é bobagem perder tempo com
textos que apresentam características que não se vêem mais na linguagem viva de hoje. Bobagens, meu filho, bobagens. O bom leitor é aquele
que trafega pelo maior número possível de registros lingüísticos. É isso.
inculta@uol.com.br
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