São Paulo, quinta-feira, 15 de novembro de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Liberdade! Liberdade! Abre as asas..."

O bom leitor é aquele que trafega com desenvoltura pelo maior número possível de registros lingüísticos

HÁ DOIS OU TRÊS ANOS, escrevi sobre o significado da palavra "república" (do latim "res publica", isto é, "coisa pública").
Não podemos esquecer que 15 de novembro é o dia da Proclamação da República. Lamentavelmente, a data serve apenas para que aeroportos, bares e estradas se entupam (e para que haja demonstrações explícitas de que ainda vivemos num fazendão chamado Brasil). A idéia do que de fato é uma república ainda está longe de boa parte da população e de significativa fatia dos senhores dos três poderes da nação.
Não sou dado a hinos, bandeiras, patriotismo barato etc., mas, diante do cada vez mais evidente fato de que nossa república é de araque, resolvi revisitar o "Hino à República", que cantei (compulsoriamente) muitas vezes na escola primária e na secundária. Lembrava-me da melodia e de parte da letra ("Liberdade! Liberdade! / Abre as asas sobre nós! / Das lutas na tempestade / Dá que ouçamos tua voz!"), mas o grosso do texto tinha ido embora da mente.
Relido o poema, vi que o grande poeta parnasiano Olavo Bilac (o autor da letra -a música é de Francisco Braga) fantasiou. Não havia e ainda não há o que ele descortinava: "Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre país... / Hoje o rubro lampejo da aurora / Acha irmãos, não tiranos hostis. / Somos todos iguais! Ao futuro / Saberemos, unidos, levar / Nosso augusto estandarte, que, puro, / Brilha, ovante, da Pátria no altar".
O leitor talvez não saiba o significado de "ovante" ("vitorioso", "triunfante", "jubiloso"), mas isso é o de menos. Um bom dicionário resolve o problema. O de mais é captar a mensagem, o que inclui destrinçar a sintaxe do texto (neste caso, de um autor parnasiano, por isso mesmo fascinado pelo rigor formal, pelos bordados sintáticos etc.). Qual o papel, por exemplo, da expressão "Ao futuro"? Trata-se de uma exortação (ato de exortar, que é sinônimo de "encorajar", "incitar")?
Não, caro leitor. Não ocorre aí nenhuma incitação, convite, chamamento, apelo ou exortação. Se fosse reescrita na ordem direta, a passagem que começa em "Ao futuro" teria mais ou menos esta redação: "Unidos, saberemos levar ao futuro nosso augusto estandarte, que, puro, brilha ovante no altar da Pátria".
E qual é a ordem direta do trecho que começa em "Nós nem cremos que..."? Vamos lá: "Nós nem cremos que outrora tenha havido escravos em tão nobre país...". Valendo-me do assunto da semana passada (as locuções com "haver", "existir" etc.), permito-me perguntar por que Bilac escreveu "tenha havido" e não "tenham havido"? Porque, como afirmei na semana passada, os verbos auxiliares não têm vontade própria; seguem a vontade do verbo principal, que no caso é "haver", com o sentido de "existir". Nesse caso, nada de plural, lembra? Vamos lá: "...que tenha havido escravos", "que tenham existido escravos". Agora, se Bilac me permite, ainda há escravos neste tão nobre, digo, vil país. E de todos os tipos...
A esta altura, alguém talvez diga que é bobagem perder tempo com textos que apresentam características que não se vêem mais na linguagem viva de hoje. Bobagens, meu filho, bobagens. O bom leitor é aquele que trafega pelo maior número possível de registros lingüísticos. É isso.


inculta@uol.com.br

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