São Paulo, domingo, 15 de novembro de 2009

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Horas no escuro

A convite da Folha, cinco novos escritores criam minicontos alinhavados pela falta de luz, e Caco Galhardo desenha suas versões

Caco Galhardo


11 de março

CAROL BENSIMON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meu pai desapareceu no apagão de 1999. Antes, era bom o escuro. Vinha com chuva, e geralmente depois de um estouro, no tempo em que o pai ligava para a companhia de energia elétrica e só dava ocupado. Tão ocupado que ele desistia (era fácil desistir quando os telefones eram de disco). Meu pai então me chamava para ir até a janela, e dali dava para ver um bocado de cidade: zona leste, um pedaço de sul, e quase todas as casas dos primos. A gente ficava ali, mergulhados na falta de lógica das manchas pretas e amarelas. Não era raro inclusive estarmos numa situação fronteiriça, nosso prédio como o próprio limite entre o claro e o escuro, dali para frente luz e para trás escuridão.
Depois de mapear a cidade, era hora de pegar a lanterna e, na parede branca, o pai tentava fazer um coelho com as mãos. Saía meio rinoceronte.
Cresci. E de repente o pai ficou estranho à sua maneira, e eu fiquei estranha à minha maneira. O pai: 500 ml diários de uísque (nacional) e um interesse além da conta por taxidermia. Eu: sombra preta, blusa preta e algum amor platônico. Luz continuava faltando, interrompendo disco ou programa de tevê, mas agora era cada um no seu quarto, eu me escondendo em mim, meu pai se escondendo nele. Em temporal, a janela batia. Ninguém dava bola. Comecei a esquecer o nome das ruas.
Na noite em que o pai sumiu, meu disco do Iron Maiden parou num falsete. Fiquei um tempo ali no quarto escuro, ouvindo os ruídos que vinham da sala. Pedras de gelo no copo, palavrão, rádio de pilha, e logo mais um berro: "Rá! Eu não votei nesse presidente". O pai tinha degringolado, fazendo um luto ao contrário: primeiro aceitou para depois se revoltar (a mãe morrera de uma doença improvável). O escuro deixava tudo mais difícil, e tanto, que ele dormia agora com a luz do banheiro acesa.
A porta da frente bateu. Fui para a janela e vi a cidade inteira sem luz, um buraco negro que havia tragado todas as ruas. Fiquei ali por muito tempo. Ouvia as buzinas soando numa avenida distante. Como seria ter mãe durante um blecaute? Enquanto isso, o pai caminhava no breu. Ia conseguir chegar ao fim da cidade antes de a luz voltar? Parecia o único jeito de não desistir do próprio sumiço. No próximo apagão, era minha vez.


CAROL BENSIMON , 27, é doutoranda em literatura na França e autora de "Sinuca Embaixo d'Água" (Companhia das Letras).

A idade da razão

RICARDO LÍSIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eu tinha quase acabado de passar o vestido quando percebi a lâmpada piscando. Corri até a tomada para desligar o ferro. Em vez de simplesmente virar o botão do aparelho, resolvi tirar o fio da parede. Acho que ainda estou um pouco confusa. Alisei com a ponta dos dedos a porção de tecido que ficara enrugada e, sem querer, encostei o punho no ferro quente. Doeu.
Ninguém veio ver o motivo do meu grito. Estranhei de início, mas me lembrei, um pouco depois, que estava sozinha em casa. Mesmo no escuro, deixei o ferro esfriar e dobrei a tábua de passar roupa. Tateei a parede até chegar ao meu quarto. Consegui achar um cabide vazio, afastei os outros vestidos e guardei o meu preferido. Deitei. Senti falta de passar a escova no cabelo, mas estava muito escuro. Talvez eu devesse ao menos tê-lo desembaraçado um pouco. Mesmo com o creme, dói.
Tentei dormir, mas meu coração disparou. Não é sempre que sou ansiosa, só que ultimamente não tenho conseguido me controlar. É uma sensação ruim. Virei de bruços e coloquei as pernas para fora do lençol. Isso me refrescou um pouco. No entanto, se a energia tivesse voltado, talvez eu preferisse ligar o ventilador. Não me incomodo com o barulho. Gosto de ouvir os ruídos da casa: o chuveiro, a televisão, minha sobrinha chorando. Ela é a coisinha mais fofa desse mundo.
Procurei refazer o rosto dela na imaginação para ver se, com isso, conseguia pegar no sono. Virei-me de novo na cama e o lençol escorreu pelos meus seios antes de cair no chão. Quando estendi o braço para pegá-lo, lembrei-me dos remédios. Por isso eu não estava conseguindo dormir... Resolvi levantar para apanhá-los no banheiro e notei um movimento estranho na janela da sala. Tinham vindo me estuprar de novo. Chamei a polícia pelo celular. Por sorte, demoraram um pouco para arrombar o trinco. Eram os cinco. Com o barulho da viatura, pularam o muro e se perderam no matagal atrás de casa.
O delegado me disse que o ideal seria mudar de faculdade. Mas para onde eu vou? Ele não soube dizer. Se você continuar lá, tenha sempre uma companhia por perto. Só que às vezes, olhei para ele, a gente acaba muito sozinha.


RICARDO LÍSIAS , 34, é doutor em literatura, tradutor e escritor, autor de "O Livro dos Mandarins" (Alfaguara).

Se não fosse o apagão

TATIANA SALEM LEVY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Disse-lhe tudo o que ensaiara durante mais de uma semana, sem esquecer uma frase, uma palavra, sem se esquecer de o ferir na medida justa. Disse-lhe a verdade, ocultando apenas os detalhes, pois foi assim que combinaram desde o início.
Ele se exaltou mais do que ela imaginava, xingou-a mais do que ela imaginava. Depois, bateu a porta e se foi. Ela, diante do vazio repentino, teve medo e se arrependeu. Em menos de dois minutos também bateu a porta. Ele já não estava no corredor. Ela teve que esperar o elevador chegar ao térreo e subir de volta ao oitavo andar. Comia o dedo médio até a carne, o sangue. Entrou no elevador xingando, por que tão lerdo sempre que ela tinha pressa? Por que o social estava quebrado? E se agora ele não a quisesse mais? Estava assim, confabulando sobre o que ia fazer e dizer, quando sentiu o corpo sendo jogado para o alto. De repente, sem mais nem menos, o elevador parou, e ela se viu dentro da pequena caixa no escuro. Tentou o interfone sem sucesso. O celular, no impulso, ficara em casa. Fechou os olhos e começou a pedir em voz alta que o elevador voltasse a funcionar, não tinha medo nem claustrofobia, apenas queria chegar até ele a tempo.
Mas o tempo foi passando, e nada. De início, berrou, esmurrou a porta, chamou por ajuda, chorou, maldisse o destino. Depois cansou. Sentou-se no chão, e todos os seus pensamentos começaram a andar pra trás: vai ver o destino tinha razão, o elevador parado devia ser um sinal de que ela fizera o que devia ser feito. E ela acreditava em sinais.
Duas horas depois, quando a luz voltou, o elevador desceu até o térreo, como se aquele intervalo de tempo não tivesse existido, e ela apertou novamente o botão e retornou à casa, segura da sua decisão. E foi assim que ela terminou sem saber que se não fosse o apagão ela o teria alcançado ainda na sua rua, e eles teriam feito as pazes. Que pouco tempo depois se casariam e seriam felizes para sempre. Mas porque histórias como essas não têm mais lugar na literatura, nem na vida, quis o destino que ela estivesse no elevador durante o apagão na cidade do Rio de Janeiro, e afirmasse para si mesma, com alegria e confiança, que, sim, tinha feito a coisa certa.


TATIANA SALEM LEVY , 30, é doutora em literatura, tradutora e escritora, autora de "A Chave de Casa" (Record).

Faltou força?

BRUNO ZENI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando o trem parou de deslizar sobre os trilhos, e as luzes das casas que acompanham a linha férrea extinguiram-se, e os olhos procuraram-se no breu, e passageiros assustados se levantaram, sentindo o coração bater, ela alcançou junto ao colo o crucifixo que lhe descia quente entre os seios, beijou as chagas do corpo e se benzeu três vezes. Depois de minutos de olhos fechados, permitiu que suas pálpebras levantassem, fruindo o suor e algo mais que misturavam calor entre suas pernas trêmulas, nuas debaixo da saia.
Nas celas, presos na tranca, de banho tomado, abandonaram leituras continuadas, cartas sendo redigidas, apostas em maços de cigarros, conversas sobre planos imediatos e castelos futuros. Voltaram-se para o mundão, livre, imerso em negro, alheio a eles -eles confinados e em paz, provisoriamente. Focos brancos e vermelhos cruzaram o céu e foram avistados por alguns, entre centenas junto às grades; um deles acenou, solitário, para a máquina voadora.
Um casal ficou na cama -o concreto da via elevada ali fora ainda vibrando do movimento dos autos, fachos luminosos penetrando a alcova funda; dormiram sem água, chuveiro elétrico inoperante, tontos de prazer, intoxicados de ar poluído e odor espesso de sexo.
Em uma festa grã-fina, as luminárias piscaram quando a mulher de longo dirigia-se ao banheiro retocar a maquiagem borrada de uma lágrima recém-vertida. Alguém a pé, percorrendo a avenida vazia e absorta, lembrou de olhar o céu e procurar estrelas improváveis no preto mais denso de então.
Em casa, sem iluminação fria na cozinha, ele apreciava o vento bater nas plantas, que ondeavam no calor externo. Velas sobre mesas de bar, nas guaritas, nas cabeceiras. Sonhos velados na escuridão, inconscientes da queda.
Longe: insetos sobre pistilos, vermes subterrâneos, peixes em profundidade, mar quebrando espuma, rios caudalosos, pegadas na mata, olhos de pássaros, semiabertos, o frio da noite, fotossíntese esperando o dia. No cerrado, um lobo-guará, pelos do dorso eriçados, persegue, sôfrego, o cheiro da presa.


BRUNO ZENI , 34, é jornalista e escritor, autor de "Corpo a Corpo com o Concreto" (Azougue).

Brancura lunar

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi num fechar e abrir de pálpebras. Ao abri-las, estava escuro. Nenhum estalo ou nada que indicasse o fim do mundo. Apreciei a quietude do instante e então ela perguntou se acontecera algo de estranho. Expliquei. "Agora estamos em pé de igualdade", ela disse. O tom de sua voz permitia adivinhar-lhe o sorriso.
Terminamos o prato. Enquanto esbarrava nas taças e derrubava talheres, eu podia sentir os movimentos dela do lado oposto da mesa, através das lufadas de seu perfume.
Ao contrário do que ocorria comigo, desastres não pareciam iminentes quando ela se movia. Da rua vinham sons abafados de perplexidade. Murmúrios nervosos nas escadarias. A porta de um carro bateu na distância. Não havia luz alguma no interior do apartamento, apenas nossas silhuetas ainda mais enegrecidas pela escuridão. Depois de levar toda a louça até a cozinha em dois minutos, ela me puxou pelos dedos.
Um enorme aprendizado deu-se naquelas duas horas, acompanhando-a singrar entre móveis na mesma velocidade da luz. "É a minha casa, eu a conheço bem", ela disse. Um único prédio aceso fulgurava na amplidão da janela do corredor, coroado pela lua perfurada por morcegos. "Venha." No quarto, despi-a sem pressa. A brancura de sua pele tremeluzia, iluminando tudo, atribuindo forma às coisas quase apagadas. "Mas existe uma diferença entre a velocidade da luz e a velocidade da treva", ela disse, "É mais ou menos como andar debaixo d'água. O tempo é diferente.
Parece um sonho". Acariciei seus olhos fechados e tentei imaginar o que eles viam. Ela me beijou e nos deitamos. Com a lua ao fundo, o corpo dela era a última paisagem desconhecida da Via Láctea. Os Alpes nevados e o Monte Fuji perfurando as nuvens. Ela apelidou cada parte de meu corpo com nomes de astronautas. "Já você aqui é a Apollo 11", ela disse, "sempre apontando para o céu".
Depois, permanecemos abraçados em silêncio. Perguntei-lhe o que estava pensando. Ela sorriu e disse que afinal conseguia me enxergar. "Este seu corpo aqui deitado é igual àquele outro que enxergo em meus sonhos", ela disse, "E agora, você pode me ver?" E então, entre música interrompida e buzinas, a luz voltou.


JOCA REINERS TERRON , 41, escritor, é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra) e lança em breve "O Peso do Coração" (Companhia das Letras).


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