São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN

Vestibular de trouxa

Uma das melhores faculdades de administração dos Estados Unidos se inspirou no misticismo indiano para ajudar seus alunos a prosperar no emprego.
Em Stanford, os alunos candidatos a gerir grandes empresas e a comandar Wall Street são submetidos a programas de meditação para desenvolver dons como a intuição.
Em silêncio, numa sala iluminada com velas, exalando incenso, com música zen, eles viajam à procura de uma espécie de fonte interior de criatividade.
Em pouco tempo, esse exótico curso virou atração, disputado pelos universitários, convencidos de que sensibilidade e flexibilidade são ingredientes vitais do profissional do futuro.
O interesse tem um motivo bem terreno: os sinais do mercado de trabalho.


Uma das razões do avanço profissional das mulheres nos Estados Unidos é porque os departamentos de recursos humanos se encantaram com supostas características femininas como a intuição -um mecanismo de apreensão do conhecimento comprovado cientificamente, que, em síntese, significa aquele estalo mental que indica a solução.
Até pouco tempo atrás, imaginava-se que, lidando bem com os conteúdos acadêmicos, o indivíduo teria chance razoável de conseguir e manter um bom emprego.
Era o tempo em que a imagem inteligência estava basicamente restrita a quem aparecesse com idéias sofisticadas e criativas, exibindo raciocínio rápido.

Estimulando o trabalho em grupo e a liderança, as empresas começaram a respeitar a inteligência emocional -a capacidade de administrar as próprias emoções e resolver conflitos sem se descabelar.
Intuição, sensibilidade ou inteligência emocional são dicas sobre a revolução no mundo do trabalho.
E mostra como ainda estamos defasados -é como se produzíssemos carruagens depois da invenção do automóvel.
Nada mais simbólico desse atraso, no Brasil, do que a cruel obrigatoriedade para um adolescente decidir o que vai cursar, ameaçado pelo vestibular, terror dos finais de ano.

Vende-se a impressão de que, ultrapassado o vestibular, ingressando numa "boa" faculdade, as portas da felicidade estarão abertas.
É conversa para pegar trouxa. Óbvio que uma faculdade de qualidade ajuda. Mas é apenas um degrau.
A formação depende, de fato, de reciclagens permanentes e a nutrição de uma série de habilidades. Entre elas, a flexibilidade para se adaptar a velozes mudanças.
Muitas vezes, o que parece um aluno indisciplinado (geralmente punido) é um indivíduo que, criativo, gosta de desafios e não se acomoda com a modorra da sala de aula.
Se tiver a sorte de uma base cultural, transmitida pela família, rapidamente recupera o tempo perdido: o mercado diz que está disposto a premiar esse indisciplinado.
Basta ver o currículo escolar dos inovadores da era da informação dos Estados Unidos. Nada comparável ao brilho em suas profissões; a começar por Bill Gates.

Apesar de todos os avanços, assistimos aqui à produção de, digamos, trouxas educacionais.
São ensinados ainda a serem fazedores de testes e acreditam que terão futuro brilhante. Bobagem.
Para piorar, o adolescente entra na faculdade sem saber o que exatamente quer fazer, com pouquíssima noção sobre as profissões do futuro.
Repito uma obviedade: as pessoas só fazem bem aquilo que gostam de fazer. Sem descobrir a vocação, é altíssimo o risco de fracasso e mediocridade.
Talvez esteja ficando velho, mas desconfio profundamente de que quase ninguém sabe qual profissão deseja com 16 anos de idade.
Mas a sociedade e os pais aplaudem quem pulou o obstáculo do vestibular. Mesmo que o salto seja no escuro.

No final do ano, as escolas divulgam seu histórico de sucesso para conquistar novas matrículas.
Ou seja, quantos alunos colocaram nas faculdades.
Proponho, aqui, a divulgação da verdade: passados dez anos, informar quantos concluíram o curso em que entraram.
Mais importante, quantos estão empregados e, mais importante ainda, bem empregados.
Aí se separa, de fato, quem prepara cidadão e quem engana trouxas.

PS - Preparei uma pasta de artigos para quem tem interesse sobre a intuição e as novas demandas profissionais.
Os textos podem ser acessados pelo Universo Online, no endereço www.aprendiz.com.br/


E-mail: gdimen@uol.com.br



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