São Paulo, quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"Insistido na pergunta, o treinador..."

Neste espaço, já tratei, mais de uma vez, da questão da evolução na regência de verbos e nomes. Em outras palavras, trata-se de um processo natural da língua, em que, por evolução ou ampliação de sentido, um verbo se torna sinônimo de outro e, muitas vezes, acaba sendo construído como ele.
O verbo "implicar", por exemplo, quando é usado com o sentido de "trazer como conseqüência" ou "demandar, tornar indispensável", tem originariamente a regência "X implica Y" ("Sua decisão implicou o cancelamento dos projetos"), mas sua proximidade com "redundar" ou "resultar" (que regem a preposição "em" -"X redunda/resulta em Y") acabou, pelo menos no Brasil, por levá-lo à construção "X implica em Y" ("Sua decisão implicou no cancelamento dos projetos").
Essa construção de "implicar" (com a preposição "em") ainda não é registrada por alguns dos nossos dicionários ("Houaiss" e "Aurélio", por exemplo, que só abonam a forma direta -"X implica Y"), mas já é citada por Celso Luft, em seu "Dicionário Prático de Regência Verbal". Luft registra a abonação do professor Rocha Lima, que afirma que a regência "implicar em" está ganhando "foros de cidade" (ou seja, legitimidade) na língua culta.
Normalmente, Luft termina esse tipo de comentário com uma observação parecida com esta: "Na linguagem culta formal, aconselha-se a construção originária". O professor não faz essa observação em relação ao verbo "implicar", o que significa que, para ele, esse uso já está mais do que consagrado. Cabe dizer que, nos registros clássicos, impera mesmo a regência "X implica Y", mas, nos escritos brasileiros modernos, é provável que haja um empate entre as duas construções.
E o nosso título? A frase ("Insistido na pergunta, o treinador...") foi dita por um radialista, que se referia a uma pergunta que já tinha sido feita diversas vezes ao técnico do São Paulo, Paulo Autuori, que deu sempre a mesma resposta ("Ainda não sei"). Será que alguém "é insistido" em algo? Até prova em contrário, costuma-se insistir em algo com alguém.
Como sempre digo, o papel precípuo de um estudioso do idioma é, se possível, tentar entender e explicar os fatos da língua. De início, convém dizer que "Insistido na pergunta" seria uma suposta passiva de algo como "insistir alguém em algo" ("insistir o treinador na pergunta", no caso). Não é preciso ir longe para perceber que isso não tem vida na língua, mas a pergunta não cala: que processo leva alguém a dizer tal frase?
Alguém pode dizer que isso já é conseqüência/influência do uso de algo como "Perguntado sobre a escalação do time, o treinador...", construção que, por sinal, muita gente condena, sem saber que a língua registra o uso de "perguntar alguém" ("Foi continuando e perguntando testemunhas", de Frei Luís de Sousa, citado por Francisco Fernandes). Ora, a passiva de "perguntar alguém" é "alguém é perguntado", portanto não há nenhum problema em "Perguntado sobre a escalação do time, o treinador..." ou em "Perguntado sobre a política econômica, o presidente...".
E a frase do radialista? Pode até ser o resultado da influência de formas como "questionado" ou "pressionado", mas parece mais um lapso ou um cruzamento de alhos com bugalhos. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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