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São Paulo, quinta-feira, 16 de janeiro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

O "conc(s)ertamento" do ministro

Posso estar enganado, mas acho que foi o ministro Tarso Genro que, ao analisar os desafios que o esperam, falou em "concertamento". Ou será "consertamento"? E por acaso existem as duas?
Existem, caro leitor. "Concertamento" e "consertamento" formam uma das tantas duplas de palavras portuguesas que têm pronúncia igual, mas grafia (e significado) diferente. Na verdade, seria bom acrescentar outra característica de algumas dessas duplas: o dom de surpreender. Muitas vezes, imaginamos saber tudo a respeito delas, mas...
Quer um belo exemplo? "Taxar" e "tachar". O primeiro significa "tributar", "estabelecer taxas", "impor limites", "julgar", "avaliar". O segundo significa "pôr tacha ou defeito em alguém ou algo", "acusar", "censurar". Pois bem, se "taxar" pode significar "julgar", "avaliar", é possível taxar de boa ou de ruim determinada música, por exemplo.
No "Aurélio", lê-se este exemplo: "Taxou o trabalho de impecável". O "Houaiss" dá este: "Taxou de excelente a intervenção da amiga". No "Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea", da Academia das Ciências de Lisboa, temos este: "Taxa-se de entendido na matéria".
E "tachar"? Como vem de "tacha" ("mancha", "defeito"), só se usa com sentido negativo: "Tacharam-no de estúpido" (exemplo do dicionário lisboeta); "Não me tachem de espírito vil" (de M. de Assis, no "Aurélio"); "Tachou-o de insensível" (do "Houaiss").
Moral da história: alguém (ou algo) pode ser taxado de bom ou de ruim, mas não pode ser tachado de bom. Só se tacha (com "ch") se for para falar mal.
Pergunto-lhe, então: o ministro Palocci foi "taxativo" ou "tachativo" ao dizer que é nula a possibilidade de renegociação da dívida dos Estados? Foi "taxativo", porque, como vimos, "taxar" pode significar "impor limites".
Vamos voltar ao "conc(s)ertamento" do ministro Genro. Sabemos que "consertar" (com "s") é o que se faz com o que está quebrado ou sofreu alguma avaria. O sapateiro, por exemplo, conserta sapatos. E que faz o estilista: "conserta" ou "concerta" sapatos? Salvo engano, o papel desse profissional é vestir bem seus clientes, o que inclui combinar ("concertar") os sapatos com a roupa.
Para entender por que o estilista "concerta" os sapatos, basta lembrar por que uma orquestra apresenta um "concerto": os sons se arranjam, conciliam-se, ajustam-se, harmonizam-se.
Bem, se Tarso Genro fala em "concertamento", fala em harmonizar, ajustar, conciliar. Fala, enfim, em "concertar". Se fala em "consertamento" (forma em desuso; em seu lugar, emprega-se "conserto"), fala em restaurar, reformar, reparar. Fala, enfim, em "consertar". Cá entre nós, no Brasil de hoje cabem as duas versões.
Homem culto, articulado, o ministro talvez tenha tido o propósito de ser ou parecer dúbio. Se era essa a intenção, alcançou-a.
Não resisto a mais uma perguntinha. Você lê "Os Ombros Suportam o Mundo", de Drummond, e sua vida fica de ponta-cabeça. O poema é "desconcertante" ou "desconsertante"? Se o poema alterou a ordem das coisas, quebrou a harmonia, pôs tudo em desarranjo, pode ter certeza: ele é desconcertante, com "c". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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