São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Índice

MODA

Estilistas, produtores e modelos contam histórias de muito trabalho e pouco glamour; São Paulo Fashion Week começa na terça

Passarelas escondem sacrifícios e fiascos

ERIKA PALOMINO
COLUNISTA DA FOLHA

Vai começar mais uma São Paulo Fashion Week. A partir de terça-feira, 47 desfiles reúnem, ao longo de sete dias, 105 mil convidados. Outra vez, em torno de modelos lindas, centenas de flashes espocam. Nos corredores da Bienal, gente descolada e vestida com as roupas mais incríveis da estação.
Nas primeiras filas, artistas, famosos e VIPs se cumprimentam, conversando displicentemente, assediados pelos "papparazzi". Nos lounges de patrocinadores, tudo do bom e do melhor, brindes para todos. Não é só. Depois, à noite, taças de champagne gelado tilintam docemente em restaurantes caros e festas exclusivas, sempre com os DJs mais bombados.
Na internet e nos jornais do dia seguinte, nas colunas sociais e extensivas coberturas, está todo mundo lá -as celebridades, as tops, as editoras de óculos escuros. Assim é o mundo fashion. Glamour, glamour e glamour.
Será que é isso mesmo? Para quem faz a moda, esse universo representa, antes de tudo, muito trabalho. Longe dos olhos da mídia e do público, o tal do glamour passa longe.
"Uma vez, dormi na arquibancada da sala de desfile", conta o diretor Carlos Pazetto. No verão 2001 da Blue Man, o piso da passarela reproduzia a calçada de Copacabana. Ao terminar a cenografia, Pazetto descobriu que o cimento simplesmente não secava e passou 48 horas acordado. "Às 6h, lavei o rosto, troquei de roupa e entrei para vestir os modelos. Já estava na hora do desfile."
Se houvesse um Dataglam, uma espécie de índice para medir a falta de glamour dessas situações, Pazetto teria cravado menos 1. O fundo do poço caberia à übermodel Gisele Bündchen, que na SPFW de 2003, fechada numa salinha por conta do assédio dos fotógrafos, teve que fazer xixi num copinho antes de entrar na passarela. No topo, o mais 5, sonho de dez entre dez fashionistas, estaria uma "after-party" exclusivíssima no Ritz, de Paris. Mas isso é privilégio de pouquíssimos; para a maioria, sobram mesmo muito trabalho, estresse e alguns micos absurdos.
Em época de desfile, sono vira artigo de luxo, e sua falta faz despencar qualquer Dataglam. À frente de mil funcionários que fazem a montagem da São Paulo Fashion Week, a produtora Graça Borges, campeã de (resolver) encrencas, ficou 72 horas sem dormir antes da última edição do evento, por conta de um problema na instalação dos painéis luminosos com os nomes dos patrocinadores. "Fiquei direto lá, tomava banho no vestiário da Bienal e só voltei para casa depois do final do primeiro dia". Dataglam: menos 2.
O estilista Reinaldo Lourenço é outro que está praticamente sem dormir. "Estou tão ligado que, quando chego em casa, fico anotando idéias num caderninho. Quando durmo, não passa de quatro horas por noite." Por conta das datas apertadas desta temporada, apenas 15 dias depois do início "oficial" do ano (segunda-feira, 3 de janeiro), Reinaldo trabalhou todos os dias do feriado de final de ano e não tirou férias em 2004. Dataglam: menos 3.

Bastidores
Quem vê apenas o resultado final não faz a menor idéia do que acontece exatamente nos bastidores de desfiles e coleções. As roupas que aparecem na passarela começam a ser criadas cerca de seis meses antes. Muitas vezes, até mesmo antes do desfile da coleção anterior, como é o caso de Alexandre Herchcovitch, organizado, sempre adiantado e nos prazos. "Para mim o desfile de inverno [que será exibido nesta semana] já acabou", diz, enfático. "Já estou pensando no verão 2006."
Alexandre é uma exceção. Em geral, atrasos de peças para o desfile causam os principais transtornos para os estilistas. "Já me aconteceu de o sapato chegar na hora de começar. Foi um drama", reclama Thais Losso, da Zapping.
"Na minha coleção "House Barroca" [verão 2002], uma semana antes roubaram um carro com todas as calças jeans. Tivemos que refazer toda a linha, e mesmo assim muita coisa não ficou pronta a tempo", lamenta Marcelo Sommer. Dois casos de Dataglam menos 4.
Timings, prazos e deadlines enlouquecem o povo da moda. Tudo é feito para evitar atrasos entre um desfile e outro -esses sim, notados pelo público, que costuma reclamar com palmas e até gritos. "No segundo desfile da Cavalera na São Paulo Fashion Week, contratamos um cenotécnico tão barato para a montagem do cenário que ele esqueceu de orçar a desmontagem", conta Marcelo Rosenbaum, hoje um badalado e experiente cenógrafo. "Estávamos cansados e achando que íamos celebrar o desfile e tomar um champagne com os amigos, mas tivemos que desmontar nós mesmos todo o cenário antes do próximo desfile", diz.
O estilista Valdemar Iódice conta que, na última edição da semana de moda, insatisfeito com a edição do desfile, decidiu, na véspera, mexer nos seis looks finais da sua marca. Para que tudo ficasse pronto a tempo, a equipe inteira de estilo, modelagem, costureiras e piloteiras virou a noite. "Foi um dos momentos mais difíceis por que já passei, todos estavam esgotados -física e psicologicamente", lembra.
Todos esses sacrifícios por um desfile que dura, em média, 15 minutos. O último verão da Forum, em julho, teve sucintos 13 minutos. Por trás de tanta concisão, 41 pessoas trabalharam durante seis meses na fábrica da grife no Belenzinho, entre costureiras, bordadeiras, modelistas. Para produzir desde os acessórios até as tinturarias das peças, são 30 oficinas terceirizadas. Na hora do desfile, são 37 produtores no "backstage", fazendo tudo funcionar. Mais 20 pessoas na equipe de beleza (cabeleireiros, maquiadores), 10 profissionais na equipe de som, 30 na comunicação (marketing, imprensa e assessores), 30 na cenografia e 15 na luz, outros cinco seguranças da marca e, fechando a soma, 40 modelos e seus bookers.
E para quem só vê as fotos e pensa que é uma moleza nos camarins, é bom saber que nem tendo comidinhas descoladas (canapés, patês, sushi, frios, sopa de abóbora) há garantia de se dar bem. Sem tempo de parar e comer, a maquiadora Cris Narvaes certa vez só chegou ao hotel às 23h, quando a cozinha já tinha fechado. "Eu estava cansada demais para sair, encontrei duas bolachas de água e sal na bolsa, dividi com meu assistente e fui dormir faminta. Fazer o quê?", lamenta ela, que nesta temporada assina a beleza das grifes Raia de Goeye, Ellus e Huis Clos. Também por falta de tempo para comer, a fotógrafa Silvia Boriello desmaiou a caminho da sala e teve de ser socorrida pelos bombeiros. "Eu nem percebi que estava sem me alimentar", conta.
O show da moda não pode parar e os fashionistas têm que trabalhar, mesmo doentes. Amir Slama, da Rosa Chá, caiu da cadeira enquanto editava o desfile na última temporada e machucou o pescoço. "Fiz todo o desfile com o pescoço duro", lembra o estilista. Dataglam: menos 3.
O glamour pode também desaparecer de repente. Na clicagem da campanha de inverno da Redley, tudo parecia perfeito. A equipe partiu cedo para o alto-mar na praia de Torres, Rio Grande do Sul. Fotografaram e estavam voltando ainda de manhã. Foi quando o condutor fez uma manobra errada e o barco virou, arremessando para fora as 13 pessoas que estavam dentro dele.
"Ninguém se machucou gravemente, mas acabamos todos no hospital, alguns com hipotermia e escoriações leves", lamenta Leonardo Ferreira, estilista da Redley. Além do susto, um grande prejuízo: todo o equipamento foi para a água -incluindo o laptop com as fotos que tinham acabado de fazer. "No dia seguinte tínhamos que recuperar o tempo perdido, mas foi difícil porque estávamos todos ainda assustados. O fotógrafo teve que se desdobrar para animar as modelos", conta Leonardo. Dataglam: menos 5.
Os problemas acontecem também fora do Brasil. "Na última temporada de Paris, participei de cinco desfiles num dia e fui para a prova de roupa da Louis Vuitton. A prova só começou à 1h e eu fiquei presa lá até as 6h", conta a modelo brasileira Marcelle Bittar, que só teve tempo de passar no hotel e lavar o rosto, seguindo para o desfile de Valentino, que ia rolar logo de manhã. Dataglam: menos 1.
Cobrindo para o site especializado "Fashion Wired Daily", um dos mais influentes da rede, o editor norte-americano Godfrey Deeny, que veio para a SPFW no ano passado, conta que uma vez, em Milão, assistiu sete desfiles seguidos num dia. Depois, chegando ao hotel, escreveu cinco artigos, editou o material e ainda enviou as fotos feitas de sua câmera digital.
"Uma jornada de trabalho tem normalmente 35 horas por semana. Os fashionistas gostam tanto da sua profissão que repetem essa jornada duas vezes por semana", brinca o jornalista, que depois dessa maratona se jogou numa das festas da temporada. Porque afinal, ninguém é de ferro, não?


Colaboraram JACKSON ARAUJO e ANDRÉ DO VAL

Texto Anterior: Petista afirma que Arselino é "o zelador da Capela"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.