São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

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Corpo de cicloativista enfrenta burocracia de 25 h para ser doado

Esse foi o tempo decorrido entre a entrada do corpo da ciclista no IML (Instituto Médico Legal) de SP até a chegada à Unifesp

Um dos últimos desejos de Márcia Regina de Andrade Prado era que o seu corpo fosse doado para pesquisa e ensinos da medicina

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Às 17h de ontem, pouco antes do ato em homenagem à ciclista Márcia Regina de Andrade Prado, 40, que morreu na quarta-feira após ser atropelada na avenida Paulista, em São Paulo, um grupo de parentes e amigos com semblantes exaustos e olhos inchados dava por encerrada a missão quase impossível de satisfazer um dos últimos desejos da morta: que seu corpo fosse doado para a pesquisa e o ensino médicos.
Segundo a amiga Vera Lucia Mestre Rosa, 48, foram necessárias 25 horas a partir das 16h de anteontem (quando o cadáver de Márcia entrou no Instituto Médico Legal) para que a disciplina de anatomia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) recebesse o corpo.
No meio da tarde, uma funcionária do IML veio com o aviso: se a remoção não acontecesse ontem mesmo, provavelmente a doação não poderia mais ser feita. O corpo estaria em decomposição avançada demais para fins didáticos ou de pesquisa, já que também passara mais quatro horas e 15 minutos estendido na Paulista, temperatura ambiente de 32C, à espera do carro do IML.
"Ficamos desconsoladas. Por coincidência, neste último final de semana, estávamos juntas e a Márcia falou sobre o desejo de doar o corpo para uma universidade", lembra a amiga Vera, que é dentista. "A Márcia fez um tratamento de acupuntura na Unifesp e ficou sabendo dessa possibilidade pós-morte. Ficou entusiasmada com a ideia", corrobora a psicóloga Lilian Finkelstein, também presente na reunião das amigas.
A primeira dificuldade enfrentada para a doação foi a própria circunstância da morte. O corpo precisava ser primeiro necropsiado, para instruir o inquérito policial. Depois, havia o fator surpresa. Uma funcionária do IML disse à Folha que nunca, em seis anos de trabalho, viu caso igual. "Não existe protocolo para a doação de corpo para o ensino e a pesquisa já que as escolas médicas são supridas com cadáveres de indigentes", disse ela. "Ninguém sabia como proceder em um caso como esse", afirma o amigo Marcelo Fernandes, 48.
Ele foi para a delegacia e para o Fórum Criminal da Barra Funda, pegar a autorizações para a doação; uma amiga foi ao cartório. Quando todas as permissões estavam concedidas, surgiu o problema: e quem leva o corpo?
O IML não leva cadáver -busca. Na Unifesp, que o receberia, o professor titular da Disciplina de Anatomia Descritiva do Departamento de Morfologia Ricardo Luiz Smith às 15h deu o retorno: não conseguira localizar o responsável pela garagem, portanto não podia providenciar o transporte.
Um funcionário sugeriu usar o Serviço Funerário. Ao procurá-lo, o grupo de amigos e parentes foi informado de que teria de pagar como se o corpo fosse ser enterrado ou cremado, custos de caixão incluídos.
Choro, lágrimas, o IML inteiro mobilizou-se para resolver o problema. O fato é que o corpo chegou à Unifesp pontualmente às 17h. A dentista Vera, que trabalha como voluntária na universidade, recebeu o protocolo da doação. "A Márcia tinha músculos invejáveis", diz ela, para explicar que os alunos poderão aprender muito no cadáver da amiga.
Em volta, os colegas ciclistas prometiam para os próximos dias: vão chumbar uma bicicleta em frente ao local em que o corpo da amiga tombou sob a roda do ônibus. Será o memorial de Márcia na Paulista, dizem eles.


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