São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2011

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DE NOVO, A CHUVA

Sem tempo para dor

Todos ali têm um parente ou amigo na lista de vítimas; parte faz questão de ajudar , mesmo de forma caótica

ALENCAR IZIDORO
MARLENE BERGAMO
ENVIADOS A NOVA FRIBURGO

Gilson da Silva, 35, fica sabendo da morte da mãe, de dois irmãos e de três sobrinhos em Nova Friburgo. Uma hora depois, está mobilizando voluntários para recolher corpos em Campo do Coelho, uma das áreas mais arrasadas pela chuva na cidade da região serrana do Rio. "Vamos lá, pega deste lado que eu pego do outro", grita ele.
O homem parece impassível diante da tragédia que atingiu sua família. Sobe na caçamba do caminhão ao lado de duas dezenas de homens e segue a rotina de achar e carregar mortos e sobreviventes pelo terceiro dia.
Não há tempo para dor. Como os vizinhos, Gilson não pode abandonar a função de voluntário. Até porque todos ali têm um parente ou amigo na lista de corpos à disputa de um espaço no cemitério.
"Fiquei três dias sem saber da família. Sem acesso, sem comunicação", diz ele, relembrando a inundação e a pane em telefones por 48 h.

APENAS VONTADE
A disposição de Gilson não é exceção na população. Nova Friburgo conta centenas de mortos, mas acumula uma massa desorganizada, porém voluntariosa, de moradores querendo ajudar.
Lidar com corpos já não mexe com a emoção de quase ninguém. Só a equipe de Gilson já havia recolhido mais de 30 mortos em três dias.
Na sexta-feira, a Folha acompanhou a viagem na caçamba do caminhão improvisado como veículo funerário, logo depois do resgate de um corpo no Hotel Shangrilá.
"Cuidado, não vai pisar na cabeça", diz Mario Antonio Pimentel, 28, servente de obra e integrante do grupo, que minutos depois descarregou o corpo numa escola que já juntava três outras vítimas fatais no começo do dia.

SEM CHORO
As buscas continuariam. "Quem sabe não encontramos mais sobreviventes", anima-se Daniel Herdi, 39, sacoleiro, um dos líderes da empreitada, exaltando a notícia boa da tarde anterior.
"Os bombeiros tentaram duas vezes e desistiram. Fomos lá, resgatamos 12 pessoas há dois dias sem comer nem beber. Trouxemos nos ombros um idoso de 89 anos. Vivo, mesmo, de verdade."
O trabalho de voluntários passa pela busca, limpeza, armazenamento e enterro das vítimas. O cheiro é ruim, há sujeira de lama e de sangue. É frequente a manipulação dos mortos sem máscaras nem luvas apropriadas.
No cemitério do centro, tudo também é improviso. Pedreiro e faxineiro fazem a função de coveiro para concretar os caixões nas gavetas.
"Já aprendi direitinho", conta José Luiz Alves, 41, após dezenas de enterros. Auxiliar da prefeitura, ele havia sido deslocado para ajudar no sepultamento.
Para as vítimas, não tem choro, nem vela, nem flores, nem oração. A Folha acompanhou três enterros na semana passada. Nenhum durou mais de um minuto.
"De que adianta. Nem é enterro, é só para deixar os corpos em algum lugar", afirma Rosimeri Moraes de Oliveira, 43, que enterrava a filha de 16 anos e um neto de apenas cinco dias de vida.
"Tinha acabado de sair da maternidade. O morro derrubou a casa, não sobrou ninguém", diz ela, ainda sem notícias do corpo do genro.

URGÊNCIA
A presença maciça de voluntários também aumenta a balburdia no trânsito. Cada carro se transforma em ambulância, com pisca alerta ligado, em velocidade, na contramão, furando semáforos.
A urgência parece a mesma tanto para hospitalizar vítimas como para distribuir água para desabrigados ou para descarregar um corpo.
"Aqui, aqui, aqui", gritam moradores do Alto Floresta, diante da aproximação da caminhonete com garrafas d'água na caçamba, num grupo que também contava com a presença da Folha.
"É só uma para cada. Não tem sobrando", dá as ordens Marcio Antonio Verli, 43, comerciante que decidiu pegar seu veículo para distribuir mantimentos. "Só eu, perdi 14 amigos aqui do lado", conta, no meio da viagem, Henrique Nascimento de Moura, 33, que ficou desabrigado e perdeu tudo na tragédia.

GUARDA DE TRÂNSITO
Em meio a uma cena de histeria coletiva, outro voluntário chamava a atenção no que restou da rodovia que ligava a cidade a Teresópolis.
"Tem gringo na área", grita um motoqueiro, ao passar pelo jovem loiro e claro, que destoava de qualquer morador da região, fazendo a função de guarda de trânsito.
Falando pouco português, em cima de uma pedra, só gesticulava os braços para organizar o fluxo da via.
"O máximo que tinha visto na vida era um vulcão", diz Martin Foll, 33, um turista da Noruega que está no Brasil desde o final do ano passado.
Junto com a psicóloga Tatiana Rui de Mendonça, 25, "meio amiga, meio namorada", ele estava a passeio na casa de um amigo em Santa Nevada, um ponto alto local.
Os dois souberam do desastre por vizinhos, depois da falta de energia elétrica.
Eles saíram pelas ruas pedindo carona e foram orientados a ajudar na organização do trânsito. "Nunca fiz isso antes na vida, mas, no meio deste caos, sempre ajuda. Até falando inglês", afirma o turista norueguês.


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