São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

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SENHORA DO DESTINO

Termos usados na trama da Globo são "pejorativos" e "cruéis"

Para ONGs, novela reforça preconceito a mulher infértil

CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

Cris foi chamada de recalcada pela cunhada. Odete, proibida de passear no playground com o sobrinho. Heloísa, impedida de acariciar a barriga da amiga grávida. Em comum, têm o fato de sofrerem dificuldades de gravidez e colecionarem histórias de preconceito por causa dessa condição.
Na semana passada, ONGs que tratam de questões ligadas à infertilidade enviaram mensagens de protesto à Rede Globo em razão de cenas da novela "Senhora do Destino" que reforçariam falsos estereótipos em relação à mulher infértil.
Na trama, a vilã Nazaré (Renata Sorrah) é estéril e seqüestrou Isabel (Carolina Dieckman) quando ela era bebê. Adulta e grávida, Isabel descobre as mentiras da falsa mãe e diz pérolas do tipo "ela [Nazaré] me olhou com o ódio de uma mulher estéril para uma grávida", "você [Nazaré] é seca", "nunca vai entender o que é amor porque nunca foi mãe" e "sua barriga é oca".
A personagem Maria do Carmo (Suzana Vieira), mãe de Isabel, também não deixa por menos. Ofendida por Nazaré, devolve o insulto com algum termo pejorativo referente à condição de estéril da vilã.
"É um absurdo. Os termos seca e oca são pejorativos, cruéis. Em hipótese nenhuma devemos permitir que sejam associados à infertilidade", diz Odete dos Santos, 46, da ONG Projeto Ser Mãe, que reúne mulheres com dificuldade de gravidez ou vítimas de abortos.
Para a psicóloga Helena Lima, professora da PUC e presidente da ONG Statamo, de educação e saúde, retratar o "olhar da mulher estéril" como nocivo ou maléfico e ter a bondade refletida na fertilidade (Maria do Carmo) "é ótimo para entreter, mas tende a reforçar preconceitos". "Mulheres sem filhos já sofrem bastante. No Brasil, esse preconceito é imenso e ainda gera outros preconceitos sociais e raciais."
A psicóloga Luciana Leis, que trabalha com casais inférteis, reforça que é preciso tomar cuidado com as possíveis associações que podem ser criadas a partir de Nazaré. "Ao escolherem uma personagem má e instável emocionalmente para representar a esterilidade, pode-se pensar que toda mulher infértil tenha distúrbios psicológicos", diz.
Estima-se que 2,1 milhões de casais brasileiros sofram dificuldades de gravidez. Desses, pelo menos 500 mil vão precisar recorrer a tratamentos mais complexos, como a fertilização in vitro (FIV), conhecida por "bebê de proveta". Porém, menos de 2% deles têm condições de se tratarem em clínicas privadas, que chegam a cobrar R$ 18 mil por ciclo de FIV.
Há uma semana, o governo federal anunciou que estuda oferecer tratamento de reprodução assistida na rede SUS, como parte da política nacional de planejamento familiar.
O médico Selmo Geber, professor de ginecologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), lembra que esse tipo de distorção faz com que casais que enfrentam dificuldades de gravidez se sintam ainda mais isolados.
Rose, 38, concorda. Casada há 11 anos, ela tenta engravidar há 9. Já tentou várias induções de ovulação com medicamentos, quatro inseminações e três FIVs.
"Eu e meu marido nunca falamos para ninguém da nossa dificuldade de engravidar. Não conseguiríamos conviver com pessoas sentindo pena, ironizando-nos. É mais fácil dizer que não queremos filhos."


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