São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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INFÂNCIA

Pesquisa define indicadores para que pediatras possam detectar problemas nas primeiras etapas do desenvolvimento

Bebês sinalizam distúrbios psíquicos

CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

Júlia, 2 meses, chega para uma consulta médica. O pediatra checa o peso, a altura e o desenvolvimento motor, auditivo e visual da criança. Percebe, porém, que a mãe não conversa e não olha para o bebê, que, por sua vez, não reage à aproximação da mãe. O médico inicia, então, um diálogo para saber a razão do comportamento.
A situação -real, ocorrida no Hospital Universitário da USP de São Paulo- revela um dos sinais clínicos de conflito na relação entre mãe e bebê, que pode desencadear transtornos emocionais na primeira infância, segundo a avaliação de psicanalistas.
O procedimento do pediatra faz parte de uma proposta de conduta médica, ainda em "gestação", que pretende fazer com que esses profissionais reconheçam distúrbios psíquicos e riscos no desenvolvimento dos bebês durante as consultas de rotina.
Há cinco anos, uma equipe de 150 profissionais, a maioria pediatras e psicanalistas, trabalha na elaboração e validação de 31 indicadores clínicos da saúde psíquica de crianças com até 18 meses.
Alguns deles já fazem parte dos cadernos de atenção básica distribuído pelo Ministério da Saúde (veja quadro). Choro constante, insônia, anorexia e apatia também podem ser reflexos de problemas emocionais na primeira infância.
A pesquisa, inédita na América Latina, acontece em 11 centros de saúde e ambulatórios brasileiros e é financiada pelo Ministério da Saúde e pela Fapesp. Cerca de mil crianças estão sendo acompanhadas por 90 pediatras, que já aplicam os indicadores, experimentalmente, nas consultas de rotina.
Segundo a psicanalista Maria Cristina Kupfer, do Instituto de Psicologia da USP de São Paulo, coordenadora da pesquisa, um dos objetivos do trabalho é avaliar a relação entre mãe e bebê. "Queremos, saber, por exemplo, se a mãe fala com o bebê e se ele reage ao movimento de fala da mãe. É sempre o par que será analisado."
Por exemplo, se um bebê colocado de bruços levanta a cabeça e alça o seu olhar, ele não o faz apenas por estar neurologicamente maduro, mas também para reencontrar o olhar da mãe. Quando não o faz, pode haver alguma perturbação nessa relação.
A idéia de desenvolver esses indicadores, explica a psicanalista, surgiu da constatação de que muitas das psicopatologias infantis, geralmente diagnosticadas a partir dos seis anos, aparecem nos primeiros meses de vida.
Pesquisas neurobiológicas dão conta de que os primeiros anos de vida da criança representam uma fase-chave tanto na formação do encéfalo como na estruturação do psiquismo.
A premissa é que, reconhecendo esses sinais precocemente, há mais chances de reverter o movimento, intervindo na relação da pequena criança e seus pais.
"[O trabalho terapêutico] não é nenhuma garantia de destino feliz ou infeliz, sucesso ou insucesso, mas é uma possibilidade de sabermos que essa criança se encaminha para ser um sujeito capaz de expressar os seus desejos e de se relacionar com mundo e as pessoas", afirma o psicanalista Alfredo Jerusalinsky, diretor científico da pesquisa.
Nessa fase experimental, explica ele, os indicadores clínicos foram aplicados em 4.000 consultas e demandaram um acréscimo de cinco a dez minutos no tempo de atendimento ao bebê.
Mas como ajustar essa aplicação nas consultas pediátricas da rede pública de saúde, que, às vezes, não passam de 15 minutos?
Essa é uma das preocupações do pediatra Maki Hirose, professor no Hospital Universitário da USP. Para ele, é fundamental que os pediatras tenham boa vontade de incorporar esses novos conhecimentos à prática médica e que os gestores de saúde dêem condições para a sua aplicabilidade.
Hirose vem orientado uma equipe de residentes do HU na utilização dos indicadores. "Eles nos instrumentalizam a prestar mais atenção às questões subjetivas dessa relação mãe-bebê."
Outra preocupação dos profissionais envolvidos no projeto é a falta de serviços públicos de saúde mental para receber bebês com psicopatologias já instaladas.
A pesquisa entra agora na fase de análise dos primeiros resultados epidemiológicos. Será verificado se o quadro psicopatológico das crianças acompanhadas terá o desfecho das previsões estabelecidas na avaliação inicial.
Segundo Jerusalinsky, ainda vai demorar pelo menos dois anos até a validação dos indicadores e a criação de um instrumento que possibilitará a sua aplicação na rotina pediátrica.
Para ele, será necessário um sistema de treinamento de curta duração dos pediatras, que respeite as práticas médicas existentes e as condições epidemiológicas e de saúde mental do país.


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