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RUBEM ALVES
A vida e a morte
Era no tempo de toca-discos.
Eu estava ouvindo um long-play com poemas de Drummond
e Vinícius. O perigo eram os riscos
que fazem a agulha saltar. Felizmente até ali tudo estava liso, sem
pulos ou chiados. Era a voz do Vinícius, voz rouca de uísque e fumo. Chegou o poema "O Haver",
meu favorito, em que o poeta fazia um balanço da sua vida, o que
restara.
"Resta essa capacidade de ternura, essa intimidade perfeita
com o silêncio..." "Resta essa vontade de chorar diante da beleza,
essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido..." "Resta
essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas tomam por esperança..."
Começava, naquele momento,
a última quadra, e de tantas vezes
lê-la eu já sabia de cor as suas palavras, e as ia repetindo dentro de
mim, antecipando o último verso
que seria o fim, sabendo que tudo
o que é belo precisa terminar.
O pôr-do-sol é belo porque suas
cores são efêmeras, em poucos minutos não mais existirão. A sonata é bela porque sua vida é curta,
não dura mais que vinte minutos.
Se a sonata não tivesse fim ela seria um instrumento de tortura.
Até o beijo... Que amante suportaria um beijo que não terminasse nunca?
O poema também tinha de
morrer para que fosse perfeito.
Tudo o que fica perfeito pede para
morrer. Depois da morte do poema é o silêncio. Nasceria então
uma outra coisa em seu lugar: a
saudade. A saudade só floresce na
ausência.
A voz do Vinícius já anunciava
o fim. Ele passou a falar mais baixo. "Resta esse diálogo cotidiano
com a morte, esse fascínio pelo
momento a vir, quando, emocionada, ela virá me abrir a porta
como uma velha amante..."
Eu, na minha cabeça, automaticamente me adiantei, recitando
em silêncio o último verso: "... sem
saber que é a minha mais nova
namorada."
Foi então que, no último momento, o imprevisto aconteceu: a
agulha pulou para trás, talvez tivesse achado o poema tão bonito
que se recusava a ser cúmplice de
seu fim, não aceitava a sua morte,
e ali ficou a voz morta do Vinícius
repetindo palavras sem sentido:
"sem saber que é a minha mais
nova, sem saber que é a minha
mais nova, sem saber que é a minha mais nova..."
Levantei-me do meu lugar, fui
até o toca-discos e consumei o assassinato: empurrei suavemente o
braço com o meu dedo, e ajudei a
beleza a morrer, ajudei-a a ficar
perfeita. Ela me agradeceu, disse
o que precisava dizer, "sem saber
que é a minha mais nova namorada." Depois disso foi o silêncio.
Fiquei pensando se aquilo não
era uma parábola para a vida, a
vida como uma obra de arte, sonata, poema, dança. Já no primeiro momento quando o compositor ou o poeta ou o dançarino
preparam a sua obra, o último
momento já está em gestação. É
possível que a última quadra do
poema tenha sido a primeira a ser
escrita pelo Vinícius. A vida é tecida como as teias de aranha: começam sempre do fim. Quando a
vida começa do fim ela é sempre
bela por ser colorida com as cores
do crepúsculo.
Não, eu não acredito que a vida
biológica deva ser preservada a
qualquer preço. "Para todas as
coisas há o momento certo. Existe
o tempo de nascer e o tempo de
morrer." (Eclesíastes 3.1-2)
A vida não é uma coisa biológica. A vida é uma entidade estética. Morta a possibilidade de sentir alegria diante do belo, morreu
também a vida, tal como Deus
no-la deu -ainda que a parafernália dos médicos continue a
emitir seus bips e a produzir zigzags no vídeo.
A vida é como aquela peça. E
preciso terminar.
A morte é o último acorde que
diz: está completo. Tudo o que se
completa deseja morrer.
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