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CENSO 2000
Número supera população de 3.663 municípios do país; responsabilidade precoce pode ser raiz de separações
Adolescentes chefiam 16,5 mil casas em SP
Maurício Piffer/Folha Imagem
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Lenílson, 18, pai de Luzia, 1, é chefe de domicílio na área indígena de Barragem, zona sul; o local tem a segunda maior concentração de adolescente chefes de domicílio, atrás apenas de outra área indígena, a de Curucutu |
SÍLVIA CORRÊA
PALOMA COTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Alguns se sentiam sozinhos e resolveram casar e ter filhos. Outros
perderam os pais -às vezes vítimas da violência- e se viram
obrigados a criar os irmãos. Por
opção ou destino, crianças e adolescentes são hoje chefes de 16.495
domicílios na capital paulista.
É pouco se comparado ao número total de domicílios permanentes da maior cidade do país
-2,986 milhões. É muito se considerarmos que esses pequenos
chefes de família -com idades
que vão dos 10 aos 19 anos- somam um exército maior do que a
população de 66,5% dos 5.507
municípios recenseados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2000
-3.663 cidades, se tomados os
números absolutos.
Esses domicílios chefiados por
crianças e adolescentes estão espalhados pela cidade -sobretudo na periferia. As maiores concentrações deles, porém, aparecem em duas comunidades indígenas em Parelheiros, distrito do
extremo sul de São Paulo -a
Área Indígena Curucutu e a Área
Indígena da Barragem.
Lá, do total de chefes de domicílio,18,18% e 13,89%, respectivamente, tinham, por ocasião do
Censo 2000, de 10 a 19 anos.
O número de domicílios chefiados por esses jovens e sua distribuição pela cidade foram obtidos
com a ajuda do software chamado
Estatcart, desenvolvido durante
um ano e meio pelos técnicos do
IBGE e lançado ontem no Rio.
O programa fornece informações por setor censitário -pequena áreas nas quais o governo
dividiu cada cidade para fazer a
coleta dos dados no recenseamento. Em São Paulo, foram
13.278 setores -pequenos o bastante para que pudessem ser percorridos por um só pesquisador.
Haverá informações por setor
censitário apenas para as 1.154 cidades com mais de 25 mil habitantes. Para cada uma delas, o IBGE criará um CD-ROM, que será
vendido pelo governo federal.
Tradição e solidão
Na Área da Barragem, onde vivem índios tupi-guarani, os casamentos precoces são comuns -e, com eles, as responsabilidades de
chefe de família.
Os motivos, dizem os próprios
adolescentes, vão da carência sentida por eles com a perda dos parentes mais velhos à própria tradição, que prega que as meninas da
aldeia estão prontas para o casamento tão logo tenham a primeira menstruação.
Foi assim com Clarice Onório, a
Djatxuka. Aos 12 anos, casou-se
pela primeira vez. Hoje, aos 17
anos -no segundo casamento e
com duas filhas-, não sabe explicar por que tudo aconteceu
"tão cedo" e lamenta não ter
aproveitado mais a adolescência.
"Acho que [o casamento precoce" foi por causa do costume ou
porque alguém da minha família
quis. Não sei ao certo", diz Clarice. "Casar com uns 20 anos deve
ser melhor. Na segunda vez, por
exemplo, já fui eu que escolhi o
meu marido porque gostei dele."
O marido de Clarice tem 19
anos. Chama-se Karamirim ou
Fábio, conforme o interlocutor.
Ambos dividem as tarefas domésticas e os trabalhos com artesanato -única fonte de renda na reserva indígena de 26 hectares. Assim sustentam Júlia, 2, e Flávia,
cinco meses. Júlia é filha do primeiro casamento de Clarice.
Conversar com os adolescentes
da aldeia é uma forma de entender na prática as explicações que
os estudiosos traduzem dos livros
e das histórias das clínicas.
"Há inúmeros motivos que empurram o adolescente para o
mundo. Um deles pode ser a cultura, sim, mas há outros, como o
desgaste das relações familiares, a
solidão que isso gera, a perda
traumática de parentes, por
exemplo", diz o psicólogo Elias
Korn Neto, 48, coordenador do
grupo de acolhimento de dependentes da Unifesp (Universidade
Federal de São Paulo).
"Ele [o adolescente] procura no
outro o afeto e o amor que não
tem em casa", diz a psicóloga Maria Beatriz Loureiro, 48, professora da Unesp.
É o que diz Lenílson, 18, vizinho
Fábio e Clarice. Casado há um
ano com Cristina, 16, ele tem uma
filha, Luzia. Diz que optou pelo
casamento para não ficar sozinho.
"Perdi meu pai e minha mãe. Precisava de alguém para dividir as
coisas. Tem horas que ser casado
é ruim, porque a gente briga. Mas
tem horas que sou muito feliz."
Pobreza e consequências
O software do IBGE mostra que
a maior parte desses jovens chefes
de domicílio moram na periferia
da capital paulista e em áreas com
baixa renda -dos 108 chefes de
famílias da Área Indígena Curucutu, por exemplo, só 12 disseram
ao Censo ter renda formal.
"Em comunidades mais excluídas não há espaço para os ritos de
passagem. A criança precisa crescer logo porque não há espaço para crianças nem para brincadeiras", diz o psicólogo Korn Neto.
Soma-se a isso "a curiosidade
afetiva e sexual típicas da adolescência, estimulada, por exemplo,
por uma excessiva valorização do
corpo", continua Maria Beatriz.
As consequências dessas responsabilidades precoces variam
de indivíduo para indivíduo, segundo os psicólogos. Mas há algumas tendências.
"A adolescência tem uma função clara de ritual de passagem e,
como tal, é uma época de muita
confusão e experimentação. Portanto, quem não vive isso pode
cair em extremos: ou se tornar
responsável demais e, com isso,
ser muito rígido consigo mesmo e
com os outros ou acabar se tornando um adolescente tardio, como naquelas casas que parece só
haver irmãos, sem pai", diz Korn.
"Muitos se separam. Isso ocorre
muito mais por não suportarem a
carga do que deixaram de viver do
que por insatisfação com o que estão vivendo", diz Maria Beatriz.
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