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São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Fábula da galinha e do veado

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Um dia, o veado e a galinha, antes grandes amigos, tiveram forte discussão, querendo cada um deles sustentar que, entre os humanos, era o outro o mais desprestigiado. Antes que a discussão esquentasse de uma vez, o veado fez até alusão aos sagrados direitos constitucionais de sua imagem, de sua intimidade e de sua honra. Perdeu seu precioso tempo.
- Não me venha com esse papo de lei. Para os animais, a lei não vale! Você é cego ou surdo-, sustentou a galinha, entre fortes cocoricós.
Fez até pior. Sem mostrar solidariedade com outros irracionais, concluiu, raspando o chão com as pontas aduncas dos pés:
- Acho que você é burro, porque não quer ver a realidade do seu desprestígio e, além de tudo, fica enfunando o peito, todo posudo.
O veado, até aí, ainda mantinha uma certa fleuma, indiferente à agitação da sua opositora, que, além de se manifestar aos gritos, fazia um esparramo, levantando pó. Contudo ser chamado pejorativamente de burro era um pouco muito. Resolveu reagir na mesma medida:
- Você, sim, é surda. Ou então não entende nada do que os humanos falam. Ser galinha, para o homem e para a mulher, é ter uma vida muito livre se é que você sabe, sendo ignorante, o que isso significa!
- Eta sujeitinho besta!-, gritou a outra, na procura de uma resposta dura e rápida. Não se deu, porém, por achada, mesmo ofendida pela conotação feia, mas injusta, dada pelos humanos à sua condição. Replicou furiosa:
- E você, seu idiota, o que é que sabe? Até na Itália eles falam dos "viados". Escrevem com "i", mas nem por isso mostram menos desprezo. Lembram até a história de Sodoma e Gomorra!-, concluiu a galinha, esganiçada pela irritação.
Essa foi a hora em que o veado embasbacou. Com que então aquela ave barulhenta e confusa já tinha lido a Bíblia!? Parou um instante, em silêncio, antes de responder:
- Pensando bem, acho que nós dois estamos bancando os bobos: fazendo o jogo dos humanos, de dividir para conquistar, usando nossas espécies até para ofendermos uns aos outros.
Quase pôs a paz a perder, com um súbito retorno à sabedoria jurídica, ao exclamar:
- Acho até que deveríamos exigir o direito de resposta.
A galinha balançou a cabeça ante a ingenuidade de seu amigo. Imediatamente, porém, compreendeu que ele tinha razão. Mudou de tom e ponderou:
- Indo na conversa dos humanos e nos gestos deles, nós nos mantemos submissos e só servimos para os golpes que aplicam. Na verdade, devemos saber que eles nos tratam sem respeito quando querem realizar seus objetivos e até para promoverem brincadeiras de mau gosto.
Feita a descoberta, ambos se puseram a rir e se abraçaram felizes.
Moral: para animais inteligentes, nenhum humano merece fé nem há lei que resolva o problema.


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