São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

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DIREITOS HUMANOS
Por preconceito e falta de provas, delito é responsável por maior número de inocentes presos e culpados nas ruas
Estupro é o delito que causa mais injustiça

AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local

Casa de Detenção de São Paulo, pavilhão 8, 20 meses atrás. Um preso é "sequestrado" pelos companheiros, acorrentado numa cela e torturado durante dois dias e duas noites. Ninguém "percebe" sua falta. Ao ser encontrado pelos carcereiros, está com o corpo em feridas e a boca dilacerada.
No ritual, além de torturas sexuais, cada preso do andar esquentava a faca e a esfriava na língua do "prisioneiro".
O motivo de tanto ódio: o homem não um bandido como os outros, era um estuprador. Entre os torturadores, muitos eram assaltantes, homicidas ou tinham matado para roubar.
Nos distritos policiais, são comuns cenas de presos abusados e até mortos por outros presos. Em muitos casos, o preso era apenas um suspeito de estupro.
Acusados de estupro ou condenados por esse crime formam a população mais execrada, assustada e desesperada das cadeias e presídios do país. São agredidos e violentados por outros presos -muitas vezes com a conivência das autoridades-, humilhados por policiais e esquecidos até pelas instituições de direitos humanos.
Formam também o contingente no qual a Justiça se revela mais temerária. Na maioria dos julgamentos, tudo o que resta é a palavra da vítima, o que transforma o estupro no crime mais sujeito a injustiças. Por conta do ódio, do preconceito e da falta de provas, o estupro é hoje o delito responsável por mais inocentes presos e mais culpados nas ruas, afirmam especialistas (leia texto na página).
Entre os detentos acusados ou condenados por estupro -estimados em cerca de 10 mil no país- a grande maioria é estuprador ordinário, que abusou de filhas, vizinhas, ex-namoradas e ex-colegas de trabalho. E nunca matou. Mas, por ser o estupro um crime hediondo, o condenado passa pelo menos seis anos em regime fechado, sem direito a benefícios, mesmo quando revela bom comportamento.
"É o tipo de lei que não deixa esperanças e que estimula a reincidência", afirma Márcio Thomaz Bastos, advogado criminalista e ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil e da seção São Paulo).
O ódio ao estuprador faz parte de uma "lei da cadeia". Os presos dizem que o estuprador é uma ameaça a suas mulheres e filhas que estão lá fora e que o crime é tão vil que o culpado merece morrer. A lei também funciona fora dos muros da cadeia, sem a interferência da autoridade e da sociedade, diz Bastos.
A repulsa provocada pelo estupro muitas vezes atropela os direitos e embaça a ação das entidades de direitos humanos. "Nunca alguém esteve aqui para saber como vivemos", diz Alexandre Tarcísio, 28, um dos 149 presos do 14º Distrito Policial, cujas celas foram reservadas a estupradores. São quase 30 presos em cada xadrez de 12 m2.
Encravado em Pinheiros, zona sudoeste de São Paulo, esse DP amontoado de estupradores não chega a preocupar. "Aqui não há violência nem tentativas de fugas", diz o delegado Edmundo de Lacerda Neto.
Apavorados com a possibilidade de serem jogados em outras cadeias -onde serão abusados e espancados-, os estupradores e acusados se transformam em presos submissos que nada reclamam. Não têm nenhum tipo de atividade -como prevê a lei- e passam o dia apertados num pátio molhado e sujo. Á noite, sentam-se grudados uns aos outros, diante de uma TV.
No final da tarde, algum preso "irmão" puxa um cântico religioso. Segundo o delegado, até um pastor evangélico que os visitava deixou de aparecer. Nenhum religioso frequenta o 14º DP.
"Nunca demos atenção especial a esse grupo de presos", diz Jairo Fonseca, que preside a Pastoral dos Direitos Humanos da Cúria Metropolitana e que por 12 anos foi membro da comissão de direitos humanos da OAB.
A falta de atenção não se deve à desinformação. "Sabemos que são comuns os casos de violência contra esse tipo de preso", diz Fonseca. "E sabemos que nesses casos não há inocentes: policiais, carcereiros e investigadores têm culpa direta na violência contra os estupradores."
Um levantamento que vem sendo feito pela Human Rights Watch mostra que os estupradores são "os excluídos dos excluídos", espancados e tomados como reféns quando há rebeliões. "Há autoridades que decretam a morte do preso ao informar aos outros que ele é estuprador", afirma James Cavallaro, diretor da instituição no Brasil.
"Não concordamos com essas cenas de crueldade", afirma Silvia Pimentel, professora de filosofia do direito da PUC-SP e militante de várias entidades feministas e de direitos humanos. "Por mais feministas que sejamos, não aceitamos comportamentos discriminatórios contra pessoas acusadas de abuso sexual. É um crime hediondo, mas que não tira a humanidade de quem o cometeu." Silvia é uma das autoras do livro "Estupro, Crime ou "Cortesia'?".
O médico Drauzio Varella, que faz trabalhos de prevenção na Detenção de São Paulo, diz que o estuprador passa o resto de seus dias em pânico. "Mesmo quando está em cela separada, ele sabe que, se houver uma rebelião, os presos vão matá-lo antes de fugir."



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