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DIREITOS HUMANOS
Por preconceito e falta de provas, delito é responsável por maior número de inocentes presos e culpados nas ruas
Estupro é o delito que causa mais injustiça
AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local
Casa de Detenção de São Paulo,
pavilhão 8, 20 meses atrás. Um
preso é "sequestrado" pelos
companheiros, acorrentado numa
cela e torturado durante dois dias
e duas noites. Ninguém "percebe" sua falta. Ao ser encontrado
pelos carcereiros, está com o corpo em feridas e a boca dilacerada.
No ritual, além de torturas sexuais, cada preso do andar esquentava a faca e a esfriava na língua do "prisioneiro".
O motivo de tanto ódio: o homem não um bandido como os
outros, era um estuprador. Entre
os torturadores, muitos eram assaltantes, homicidas ou tinham
matado para roubar.
Nos distritos policiais, são comuns cenas de presos abusados e
até mortos por outros presos. Em
muitos casos, o preso era apenas
um suspeito de estupro.
Acusados de estupro ou condenados por esse crime formam a
população mais execrada, assustada e desesperada das cadeias e presídios do país. São agredidos e violentados por outros presos -muitas vezes com a conivência das autoridades-, humilhados por policiais e esquecidos até pelas instituições de direitos humanos.
Formam também o contingente
no qual a Justiça se revela mais temerária. Na maioria dos julgamentos, tudo o que resta é a palavra da vítima, o que transforma o
estupro no crime mais sujeito a injustiças. Por conta do ódio, do
preconceito e da falta de provas, o
estupro é hoje o delito responsável
por mais inocentes presos e mais
culpados nas ruas, afirmam especialistas (leia texto na página).
Entre os detentos acusados ou
condenados por estupro -estimados em cerca de 10 mil no
país- a grande maioria é estuprador ordinário, que abusou de filhas, vizinhas, ex-namoradas e
ex-colegas de trabalho. E nunca
matou. Mas, por ser o estupro um
crime hediondo, o condenado
passa pelo menos seis anos em regime fechado, sem direito a benefícios, mesmo quando revela bom
comportamento.
"É o tipo de lei que não deixa
esperanças e que estimula a reincidência", afirma Márcio Thomaz
Bastos, advogado criminalista e
ex-presidente da OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil e da seção
São Paulo).
O ódio ao estuprador faz parte
de uma "lei da cadeia". Os presos dizem que o estuprador é uma
ameaça a suas mulheres e filhas
que estão lá fora e que o crime é
tão vil que o culpado merece morrer. A lei também funciona fora
dos muros da cadeia, sem a interferência da autoridade e da sociedade, diz Bastos.
A repulsa provocada pelo estupro muitas vezes atropela os direitos e embaça a ação das entidades
de direitos humanos. "Nunca
alguém esteve aqui para saber como vivemos", diz Alexandre Tarcísio, 28, um dos 149 presos do 14º
Distrito Policial, cujas celas foram
reservadas a estupradores. São
quase 30 presos em cada xadrez de
12 m2.
Encravado em Pinheiros, zona
sudoeste de São Paulo, esse DP
amontoado de estupradores não
chega a preocupar. "Aqui não
há violência nem tentativas de fugas", diz o delegado Edmundo de
Lacerda Neto.
Apavorados com a possibilidade
de serem jogados em outras cadeias -onde serão abusados e espancados-, os estupradores e
acusados se transformam em presos submissos que nada reclamam. Não têm nenhum tipo de
atividade -como prevê a lei- e
passam o dia apertados num pátio
molhado e sujo. Á noite, sentam-se grudados uns aos outros,
diante de uma TV.
No final da tarde, algum preso
"irmão" puxa um cântico religioso. Segundo o delegado, até um
pastor evangélico que os visitava
deixou de aparecer. Nenhum religioso frequenta o 14º DP.
"Nunca demos atenção especial a esse grupo de presos", diz
Jairo Fonseca, que preside a Pastoral dos Direitos Humanos da Cúria Metropolitana e que por 12
anos foi membro da comissão de
direitos humanos da OAB.
A falta de atenção não se deve à
desinformação. "Sabemos que
são comuns os casos de violência
contra esse tipo de preso", diz
Fonseca. "E sabemos que nesses
casos não há inocentes: policiais,
carcereiros e investigadores têm
culpa direta na violência contra os
estupradores."
Um levantamento que vem sendo feito pela Human Rights Watch
mostra que os estupradores são
"os excluídos dos excluídos",
espancados e tomados como reféns quando há rebeliões. "Há
autoridades que decretam a morte
do preso ao informar aos outros
que ele é estuprador", afirma James Cavallaro, diretor da instituição no Brasil.
"Não concordamos com essas
cenas de crueldade", afirma Silvia
Pimentel, professora de filosofia
do direito da PUC-SP e militante
de várias entidades feministas e de
direitos humanos. "Por mais feministas que sejamos, não aceitamos comportamentos discriminatórios contra pessoas acusadas de
abuso sexual. É um crime hediondo, mas que não tira a humanidade de quem o cometeu." Silvia é
uma das autoras do livro "Estupro, Crime ou "Cortesia'?".
O médico Drauzio Varella, que
faz trabalhos de prevenção na Detenção de São Paulo, diz que o estuprador passa o resto de seus dias
em pânico. "Mesmo quando está em cela separada, ele sabe que,
se houver uma rebelião, os presos
vão matá-lo antes de fugir."
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