São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

Ubérrimo, nigérrimo, macérrimo...


Não seria o caso de sedimentar nos estudantes a noção de que as palavras podem ser "desmontadas"?

NÃO RARO, SAPECO nos meus textos algumas palavras ou estruturas de uso pouco comum. Faço isso para despertar no leitor curiosidade ou inquietação e, obviamente, para colocá-lo em contato com formas da língua que podem aparecer em textos clássicos.
Quase sempre, o resultado disso é uma pilha de mensagens dos leitores. Dia desses, empreguei o verbo "interessar" como transitivo direto ("Tal coisa interessa alguém"; "O passado dos políticos pouco interessa o eleitorado") e não com a freqüente construção indireta ("Tal coisa interessa a alguém"; "O passado dos políticos pouco interessa ao eleitorado"). Choveram mensagens que evidenciam a pouca familiaridade com o manuseio dos dicionários.
Na maior parte dos casos, quem consulta essas obras quer saber como se grafa determinada palavra.
Em segundo lugar, vem o significado dos vocábulos, e depois as diferentes possibilidades de uso das palavras.
Muita gente sai do dicionário como entra, isto é, com a dúvida por resolver. No caso do verbo "interessar", é preciso entender o significado de certas "letrinhas" ou terminologias. Logo na primeira definição de "interessar", o "Aurélio" dá esse verbo como transitivo direto: "A nova lei interessa as empresas particulares"; "O restabelecimento das relações (...) interessava Aurélia..." (de "Senhora", de José de Alencar).
Na última coluna, empreguei a palavra "ubérrima" ("...a ubérrima desfaçatez..."), que já empregara semanas antes ("...a ubérrima usina...").
Batata! Vários leitores disseram que não encontraram "ubérrima" no dicionário. Nem poderiam. Os dicionários não registram adjetivos no feminino; se constituir uma entrada, o termo aparecerá no masculino -"ubérrimo", no caso.
E por que escrevi "se constituir uma entrada"? Porque os dicionários nem sempre registram os superlativos eruditos (é esse o caso de "ubérrimo", superlativo de "úbere").
Nos minidicionários, nem se pode alimentar essa expectativa; nos grandes, o registro dos superlativos eruditos é procedimento padrão, mas pode escapar um ou outro.
Algumas noções de morfologia podem facilitar a busca. No caso de "ubérrimo", o conhecimento do valor da terminação "-érrimo" (de "acérrimo", "celebérrimo", "nigérrimo", "macérrimo" etc.) pode fazer o consulente queimar uma etapa da consulta e ir direto a "úbere", "acre", "célebre", "negro" e "magro".
Nessas horas, muita gente vai se lembrar daquelas aulas terríveis, em que o professor mandava decorar listas e listas de aumentativos, diminutivos e superlativos, sem reflexões sobre as formas que às vezes as palavras assumem nessas flexões.
Não seria o caso de formar no estudante a noção de que as palavras podem ser "desmontadas"? Depois disso, que tal um passeio pela etimologia? Que tal explicar aos alunos que o superlativo erudito de "negro" e de "magro" é, respectivamente, "nigérrimo" e "macérrimo" porque essas formas se apóiam nas formas latinas ("nigru" e "macru")?
Em "ubérrimo", temos o superlativo erudito do adjetivo "úbere" ("fecundo", "abundante"). Não se pode esquecer que, como substantivo, "úbere" (do qual há a variante "ubre") significa "mama", "seio" (de vaca ou de outro animal). Não é por acaso que (metaforicamente) se diz que muita gente entra na política (ou "na vida pública", como eufemizam alguns) com a intenção de mamar nas úberes, ubérrimas tetas da nação. Pobres de nós! É isso.

inculta@uol.com.br


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