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Que olhos os teus
Presa há cinco anos em uma cama, sem nem piscar por conta própria, a advogada e poeta Leide Moreira mobilizou equipamentos e oito pessoas para assistir a show de Ney Matogrosso
LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO
O cantor Ney Matogrosso
encontrou-se no domingo,
assim que terminou o show
"Beijo Bandido", com a fã
Leide Moreira, 62. Ela não lhe
disse uma palavra. Apenas
olhou para o ídolo. Não mexeu um músculo. Ele perguntou se ela compreendia o que
estava acontecendo. Sim. E
acabou-se o encontro da fã
com o cantor. Nem beijo teve.
Mas Leide, advogada e
poeta, estava feliz como há
muito tempo não acontecia.
Imobilizada desde 2005 em
uma cama, por causa da
doença conhecida como esclerose lateral amiotrófica,
caracterizada pela paralisia
progressiva de cada músculo
do corpo, Leide escolheu ir
ao show de Ney Matogrosso.
Ela não fala, não anda,
não come. Nem respira. Todas essas funções são realizadas por aparelhos, oxigenadores e sondas espetadas
pelo corpo.
Também não pisca. O abrir
e fechar de olhos, necessário
para a lubrificação do globo
ocular, quem faz são cuidadoras e enfermeiras, manuseando com delicadeza e paciência as pálpebras sem força nem para um piscar. (Até o
verbo ficou estranho: "Pisca
a Leide, por favor", pede uma
cuidadora à outra de tempos
em tempos.)
Mas a mulher ouve e entende o que se passa em volta. Por exemplo, gosta de Ney
Matogrosso, que canta de Vinícius de Moraes "Quantos
naufrágios/ Nos olhos
teus.../ Ó minha amada/ Que
olhos os teus".
Foi com os olhos -a única
coisa que ainda consegue
mover por conta própria-
que Leide falou de seu desejo
de ir ao show. A mulher se comunica como o protagonista
do filme "O Escafandro e a
Borboleta" (França, 2008).
Uma tabela com letras e
palavras-chave é-lhe apresentada. Coluna 1? Olhos virados para a direita significam "sim", para a esquerda,
"não". As cuidadoras Ivania
Soares e Eliane de Almeida
perguntam pacientemente:
Coluna 1? 2? 3?, até que venha o "sim". Segue-se a pesquisa da linha. 1? 2? 3? Até o
"sim". Na intersecção de linha e coluna, surge a letra
desejada. E outra e outra. Até
formar a palavra: Ney.
Leide não saía de casa desde o aniversário de São Paulo
(25.jan). É difícil. A família
tem de alugar ambulância
com médico, técnico de enfermagem e enfermeiro,
além do motorista socorrista.
Como equipamentos de
apoio, leva um concentrador
de oxigênio, um respirador,
cilindro de oxigênio, sonda
para urina, dieta para ser ministrada diretamente no estômago. E vão ainda as duas
cuidadoras e a técnica de enfermagem Cristiane Santos
Antão da Silva. Mais a filha,
chamada Leide, como a mãe.
Ivania e Eliane aprenderam a gostar de Ney Matogrosso com Leide. Os olhos
pedem os CDs. As duas decoraram todas as músicas. No
show, enquanto uma mão
"pisca" Leide, a outra mão
dança ao ritmo de "Fascinação": "E, no teu olhar, tonto
de emoção, com sofreguidão,
mil venturas previ."
O Sesc Pinheiros, onde fica
o Teatro Paulo Autran, com
1.010 lugares, é um oásis para pessoas com necessidades
especiais -tem 20 espaços
para cadeirantes, 20 para
acompanhantes, 5 para pessoas com mobilidade reduzida e 11 cadeiras especiais para obesos. Mas o local nunca
tinha acolhido alguém com
necessidades tão, tão especiais quanto as de Leide.
Instalaram uma tomada ligada diretamente ao gerador
-se a Eletropaulo falhasse, o
respirador seguiria funcionando. E arrancaram uma fileira de cadeiras a fim de acomodar o mundo de Leide.
Uma diferença e tanto do
tratamento dispensado a Leide em 2008 pelo Citibank
Hall, em outro show de Ney
Matogrosso. Na ocasião, a casa de espetáculos cobrou,
além dos ingressos dos
acompanhantes, quatro ingressos de Leide, alegando
que ela, a maca e os equipamentos ocupariam o espaço
de uma mesa. Ela pagou. "Eu
não vou dizer nada por dizer,
então eu escuto."
Leide mora bem pertinho
do Ibirapuera. Até fevereiro
de 2005, fazia cooper no parque. Em agosto, já presa à cama, submeteu-se a uma gastrostomia (para a introdução
da dieta no estômago). Em
novembro, foi a traqueostomia, para respirar. "Foi um
ano sem poesia", escreveu
ela com o método da tabela.
As Leides, mãe e filha, procuram não pensar na tragédia nem nas promessas de
cura. Pensam apenas no dia
de hoje. E o domingo foi lindo. "Fiquei bastante emocionada. Minha equipe se mobiliza inteira para que eu possa
sair", ela escreveu, respondendo à Folha.
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