São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2008

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CECILIA GIANNETTI

São Paulo nas ventas


Vento que espanca as vidraças dos prédios, rodeia a praça e a igreja cujo sino dá a hora certa

QUEM ME LÊ em São Paulo sabe melhor: tem um vento rosnando fora, na praça Roosevelt, assobiando e soprando coisas num tom que sobe e cai conforme a intensidade do que quer dizer. Vento que espanca as vidraças dos prédios, rodeia a praça e a igreja cujo sino dá a hora certa, se oferece pra espalhar os picadinhos feitos do meu ticket aéreo da volta ao Rio.
A gata que me hospeda sobe numa escrivaninha repleta de pertences meus e brinca de jogar um a um ao chão, por não serem do rol de sua dona, senhora da casa. Eu sou a estranha invasora de que Madeleine se lembra vagamente. Estive aqui no final do ano passado, com a mesma mala cinza, mochila pro "note", bolsa de mão -mais dúvidas que cacarecos ("nem fala nas dívidas...", um associado sugere). Minhas botas jogadas num canto do quarto, promessas e cheiros que a gata Mad desconhece, das solas revelam todo o proibido mundo que existe do lado de fora do apartamento da Roosevelt.
Olhando pra bagunça que fiz eu mesma e pra que o animal hiperativo completa, atirando pequenos objetos, irrecuperáveis entre móveis e chão, concedo o quanto a mala cinza me puxa de um canto pra outro, cada vez mais freqüente e incerto o caminho e o tempo de estadia. Sou a marionete da mala cinza.
Por que ficar num lugar, se hoje pode ser a Roosevelt, ainda ontem era a Vila Mariana; semanas atrás, ilha de Paquetá? Mais prático seguir a regra, a maioria, escolher um ponto apenas. Nó cego e só. E eu lá quero? Cá e lá.
"Amor" -entre aspas jocosas, que sustentam a fragilidade de suas definições- é complicado. Compreendo somente um pouco de um tipo de amor: do que sentimos por certos locais; desejo de estar, sorver e conviver em cada diferente vizinhança, meu amor. E já é muito saber esse pouco: amor não-ciumento, nem rancoroso, grito do vento, um estranho em cada lugar; fraco, destruidor ou gelado, quando o tempo vira e os casacos pulam das malas para nos abraçar. Quando temos a sorte de ter malas e agasalhos, diferentemente da turma de sob os viadutos, vestes sob medida. Diferentemente do meu casaco, que aperta até o coração.
Hoje escolho a praça como se tivesse sido toda desenhada pelo Carlos Carah, dia e noite teatros, lojinhas de "mudernidades" em cerâmica, bares, atrizes encharcadas de vinho, debutantes góticas no sereno pedindo por tuberculose. E o caixa de supermercado que oferece (ou demanda?): "Nota fiscal paulista". Não manjei. Ele repete. Eu, neca. E agora quer: "CPF". Quando lhe mostro o documento comido nas pontas, sem dúvida que oriundo do Rio, aí o caixa bufa levemente e abandona toda essa performance pra se dirigir a compradores que queiram "Nota Fiscal Paulista". Deve integrar algum grupo experimental nonsense, praticando seu stand-up em horário comercial.
Com ou sem nota fiscal... Por que não dá pra ter todos os lugares? Quase pelos mesmos motivos pelos quais não se possa querer daquele jeito tantas quantas pessoas a gente decida, ainda que se divida o que temos a dar e contente cada uma delas (tá, pode até rolar). Com os lugares, é questão de logística: querer todos custa um dinheiro danado. Passagens de avião, trem, barca, ônibus e moradia.
Mudo pra lá e pra cá, com sorte recebida por amigos. Por animais de estimação que me estranham após uns meses sem me ver. Por bairros paulistanos, gaúchos, nordestinos, interioranos, insulanos, caros e baratos, esquecidos pelo mundo ou, eles mesmos, o próprio centro do mundo, seu umbigo e sua fé, que sustenta prédios, supervias, praças e sinucas vazias.


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