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CRIMES INVISÍVEIS
Casos de assassinato são registrados pela polícia paulista como "morte a esclarecer" ou "encontro de cadáver"
Boletins distorcem estatística de homicídio
Fernando Donasci/Folha Imagem
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Roberto dos Santos Gelano, cujo filho de 17 anos foi assassinado e teve a morte registrada pela polícia como "encontro de cadáver" |
GILMAR PENTEADO
ALEXANDRE HISAYASU
DA REPORTAGEM LOCAL
Em um espancamento com
morte, nomes e apelidos de suspeitos de praticar o crime são relacionados. Em outro caso, depois
de uma denúncia anônima de assassinato, um corpo é encontrado
enterrado com uma lesão na cabeça. Em um terceiro local, onde
outro jovem é encontrado morto,
é descrita uma cena montada para simular um suicídio.
Todas os dados acima estão em
boletins de ocorrência registrados
por policiais civis de São Paulo,
com a assinatura de um delegado.
Apesar das evidências existentes
no momento da elaboração do
boletim, nenhum desses casos foi
registrado como homicídio doloso (com intenção). Com isso, ficaram de fora das estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime na
gestão do governador Geraldo
Alckmin (PSDB).
No cabeçalho dos boletins, no
item "natureza" da ocorrência,
aparecem "encontro de cadáver"
e "morte a esclarecer". Essas classificações -destinadas a casos
em que não há sinal externo de
violência e a vítima poderia ter sofrido morte natural- fazem com
que esses registros entrem na categoria estatística das "ocorrências não-criminais".
A Folha identificou 14 boletins
de 2004 nos quais, segundo especialistas e a Ouvidoria Geral da
Polícia de São Paulo, o registro de
encontro de cadáver ou morte a
esclarecer é contraditório com as
evidências de assassinato listadas
pelos próprios policiais no mesmo documento (veja quadros na
página C3). A imprensa não tem
acesso ao sistema informatizado
de boletins, o que permitiria uma
pesquisa mais ampla.
A reportagem também entrevistou familiares de vítimas e testemunhas citadas nos boletins,
que afirmaram ter visto lesões ou
outros indícios de homicídio doloso, o que garantiria a inclusão
dos crimes nas estatísticas.
Distorção
Integrantes do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e do Núcleo de Estudos da
Violência da USP (Universidade
de São Paulo), além do ouvidor-geral da polícia paulista, Itajiba
Farias Ferreira Cravo, dizem que
não há dúvidas de que os documentos foram preenchidos incorretamente, de propósito ou não.
O resultado disso, segundo eles,
é o mascaramento das estatísticas
de homicídios dolosos no Estado.
A Secretaria Estadual da Segurança Pública nega que tenha havido
erro no preenchimento dos BOs.
Os boletins de ocorrência são a
base para a elaboração das estatísticas criminais. Oficialmente, os
homicídios dolosos estão queda.
Os primeiros nove meses de 2004
apontaram 6.855 casos no Estado
-é o menor índice em pelo menos dez anos.
A estatística é mencionada pela
Secretaria da Segurança Pública
como um sinal da diminuição da
criminalidade e do aumento da
eficácia da sua polícia.
"Existe uma incoerência clara
entre a natureza definida e o histórico registrado", afirma o presidente do IBCCrim, Maurício Zanóide de Moraes.
Para ele, existem três explicações possíveis para essa incoerência: má-fé (com o objetivo de maquiar estatísticas), negligência ou
incompetência.
No primeiro caso, Moraes lembra que, nos últimos anos, aumentou a importância das estatísticas sobre o trabalho policial. De
um lado, o governo quer baixar os
índices para mostrar controle da
criminalidade. De outro, policiais
também passaram a ser mais cobrados para cumprir metas de redução de crimes.
Dupla informação
Segundo Moraes, isso pode explicar a incoerência entre a natureza da ocorrência e as informações do histórico. "[O boletim]
engana a estatística, mas conta a
verdade para a equipe que vai investigar o caso", afirma o presidente do IBCCrim.
Ele também acredita que a negligência e até a incompetência de
alguns policiais podem explicar
esses erros. "Mas só um levantamento estatístico completo, com
tendências anteriores, poderá esclarecer isso", afirma.
Para Wânia Pasinato Izumino,
pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) e doutora
em sociologia, o erro nos boletins
é indiscutível e é mais um fator
que coloca em xeque a credibilidade das estatísticas criminais em
São Paulo. "A polícia não tem padronização para nada."
Dos 14 boletins de ocorrência
identificados pela reportagem,
seis se referem a mortes ocorridas
na capital paulista, sete na Grande
São Paulo e um no interior paulista -todas as divisões territoriais
adotadas pela secretaria para a
elaboração das estatísticas.
Exceção
"O que se pode dizer é que, no
mínimo, está se trabalhando de
maneira equivocada e utilizando
uma exceção [morte a esclarecer e
encontro de cadáver] onde claramente há um tipo penal", afirma
o ouvidor-geral da polícia de São
Paulo. Para ele, só uma investigação caso a caso vai mostrar se
houve dolo -intenção de burlar
as estatísticas.
"Isso pode ser só a ponta do iceberg", alerta o delegado aposentado Roberto Maurício Genofre, ex-corregedor da Polícia Civil e professor da Academia de Polícia,
também integrante da diretoria
do IBCCrim.
"As estatísticas criminais são
uma caixa preta, o que permite
que eles [o governo] vivam sem
controle", afirma Genofre, que
também é professor de direito na
PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Segundo ele,
a falta de acesso impede que as estatísticas sejam contestadas.
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