São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 2005

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CRIMES INVISÍVEIS

Casos de assassinato são registrados pela polícia paulista como "morte a esclarecer" ou "encontro de cadáver"

Boletins distorcem estatística de homicídio

Fernando Donasci/Folha Imagem
Roberto dos Santos Gelano, cujo filho de 17 anos foi assassinado e teve a morte registrada pela polícia como "encontro de cadáver"


GILMAR PENTEADO
ALEXANDRE HISAYASU
DA REPORTAGEM LOCAL

Em um espancamento com morte, nomes e apelidos de suspeitos de praticar o crime são relacionados. Em outro caso, depois de uma denúncia anônima de assassinato, um corpo é encontrado enterrado com uma lesão na cabeça. Em um terceiro local, onde outro jovem é encontrado morto, é descrita uma cena montada para simular um suicídio.
Todas os dados acima estão em boletins de ocorrência registrados por policiais civis de São Paulo, com a assinatura de um delegado. Apesar das evidências existentes no momento da elaboração do boletim, nenhum desses casos foi registrado como homicídio doloso (com intenção). Com isso, ficaram de fora das estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime na gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB).
No cabeçalho dos boletins, no item "natureza" da ocorrência, aparecem "encontro de cadáver" e "morte a esclarecer". Essas classificações -destinadas a casos em que não há sinal externo de violência e a vítima poderia ter sofrido morte natural- fazem com que esses registros entrem na categoria estatística das "ocorrências não-criminais".
A Folha identificou 14 boletins de 2004 nos quais, segundo especialistas e a Ouvidoria Geral da Polícia de São Paulo, o registro de encontro de cadáver ou morte a esclarecer é contraditório com as evidências de assassinato listadas pelos próprios policiais no mesmo documento (veja quadros na página C3). A imprensa não tem acesso ao sistema informatizado de boletins, o que permitiria uma pesquisa mais ampla.
A reportagem também entrevistou familiares de vítimas e testemunhas citadas nos boletins, que afirmaram ter visto lesões ou outros indícios de homicídio doloso, o que garantiria a inclusão dos crimes nas estatísticas.

Distorção
Integrantes do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), além do ouvidor-geral da polícia paulista, Itajiba Farias Ferreira Cravo, dizem que não há dúvidas de que os documentos foram preenchidos incorretamente, de propósito ou não.
O resultado disso, segundo eles, é o mascaramento das estatísticas de homicídios dolosos no Estado. A Secretaria Estadual da Segurança Pública nega que tenha havido erro no preenchimento dos BOs.
Os boletins de ocorrência são a base para a elaboração das estatísticas criminais. Oficialmente, os homicídios dolosos estão queda. Os primeiros nove meses de 2004 apontaram 6.855 casos no Estado -é o menor índice em pelo menos dez anos.
A estatística é mencionada pela Secretaria da Segurança Pública como um sinal da diminuição da criminalidade e do aumento da eficácia da sua polícia.
"Existe uma incoerência clara entre a natureza definida e o histórico registrado", afirma o presidente do IBCCrim, Maurício Zanóide de Moraes.
Para ele, existem três explicações possíveis para essa incoerência: má-fé (com o objetivo de maquiar estatísticas), negligência ou incompetência.
No primeiro caso, Moraes lembra que, nos últimos anos, aumentou a importância das estatísticas sobre o trabalho policial. De um lado, o governo quer baixar os índices para mostrar controle da criminalidade. De outro, policiais também passaram a ser mais cobrados para cumprir metas de redução de crimes.

Dupla informação
Segundo Moraes, isso pode explicar a incoerência entre a natureza da ocorrência e as informações do histórico. "[O boletim] engana a estatística, mas conta a verdade para a equipe que vai investigar o caso", afirma o presidente do IBCCrim.
Ele também acredita que a negligência e até a incompetência de alguns policiais podem explicar esses erros. "Mas só um levantamento estatístico completo, com tendências anteriores, poderá esclarecer isso", afirma.
Para Wânia Pasinato Izumino, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) e doutora em sociologia, o erro nos boletins é indiscutível e é mais um fator que coloca em xeque a credibilidade das estatísticas criminais em São Paulo. "A polícia não tem padronização para nada."
Dos 14 boletins de ocorrência identificados pela reportagem, seis se referem a mortes ocorridas na capital paulista, sete na Grande São Paulo e um no interior paulista -todas as divisões territoriais adotadas pela secretaria para a elaboração das estatísticas.

Exceção
"O que se pode dizer é que, no mínimo, está se trabalhando de maneira equivocada e utilizando uma exceção [morte a esclarecer e encontro de cadáver] onde claramente há um tipo penal", afirma o ouvidor-geral da polícia de São Paulo. Para ele, só uma investigação caso a caso vai mostrar se houve dolo -intenção de burlar as estatísticas.
"Isso pode ser só a ponta do iceberg", alerta o delegado aposentado Roberto Maurício Genofre, ex-corregedor da Polícia Civil e professor da Academia de Polícia, também integrante da diretoria do IBCCrim.
"As estatísticas criminais são uma caixa preta, o que permite que eles [o governo] vivam sem controle", afirma Genofre, que também é professor de direito na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Segundo ele, a falta de acesso impede que as estatísticas sejam contestadas.


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