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São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

Os bagdalis e os somalis (ainda)

Na semana passada, analisei a relação grafia/acentuação/pronúncia. O ponto de chegada foi a palavra "bagdali", adjetivo relativo a Bagdá. Expliquei que, se a grafia é "bagdali", a pronúncia só pode ser "bagdalí", com força no "i", como se faz com "abacaxi", "perdi", "prometi" etc.
Abundantes em nossa língua, as oxítonas terminadas em "i" não são acentuadas. Opõem-se a elas as paroxítonas terminadas em "i", que, justamente por serem raras, recebem o acento. Para que a sílaba tônica de "bagdali" fosse "da", seria necessária a presença do acento agudo no "a".
Pois bem, publicada a coluna, recebi esta interessante mensagem do leitor Nelson Stevani Júnior: "Fiquei surpreso quando soube que as pronúncias corretas para as pessoas ou coisas naturais de Bagdá ou da Somália são "bagdali" e "somali". Quem ou como se estabelece uma pronúncia? Que lógica há em pronunciar, por exemplo, "bagdali", e não "bagdáli", se o adjetivo é originário do substantivo "Bagdá'? Que palavra surgiu primeiro, "Bagdá" ou "bagdali'? Quem determina o quê? A pronúncia determina a forma escrita, ou é o contrário?".
Caro Nelson, tentarei responder a uma parte de sua pergunta. Conflitos entre a pronúncia corrente e a recomendada por dicionários e gramáticas sempre houve. São exemplos disso as palavras "lêvedo", "boêmia", "néon", "zângão" e "azálea", entre outras. Durante muito tempo, os dicionários se negaram a registrar o que era mais do que corrente no uso geral ("levedo", "boemia", "neon", "zangão" e "azaléia", respectivamente). Quando muito, registravam a forma mais usada com a classificação de "popular".
O caso de "boêmia" é bem interessante. Os dicionários dizem que esse substantivo (sim, substantivo) significa "vida alegre e despreocupada" ("Aurélio"), "roda de intelectuais, artistas etc. que leva a vida de modo bastante hedonista e livre, bebendo e divertindo-se" ("Houaiss").
Ora, com esse sentido, o povo diz "boemia" (com força no "i"). O povo usa "boêmia" como adjetivo ("vida boêmia", "pessoa boêmia"). Já imaginou Nélson Gonçalves cantando "Boêmia, aqui me tens de regresso..."? E Vinicius ("Hoje eu saio na noite vazia numa boêmia sem razão de ser...")?
Rendidos à realidade, o "Houaiss" e a última edição do "Aurélio" registram muitos dos pares prosódicos e gráficos ("boêmia" e "boemia", por exemplo). Em alguns casos, o "Aurélio" limita-se a falar em "variação prosódica" (variação de pronúncia) ou em "forma paralela", enquanto o "Houaiss" informa qual das duas pronúncias é considerada culta, erudita ou "mais correta".
O "Aurélio" ainda ignora a forma "neon", usadíssima, e só registra "néon" (com força no "e").
A questão é esta, caro Nelson: é dever do dicionário registrar a forma erudita ou culta, o que não lhe tira o dever de registrar o que tem uso mais do que vivo em determinada variedade da língua. O caso de "bagdali", no entanto, parece-me diferente, já que o emprego desse termo é circunstancial, o que nos impede de falar de conflito entre isto e aquilo. Foi por isso que, na semana passada, centralizei a discussão na relação grafia/acentuação/pronúncia.
A questão ainda mereceria outros comentários, que serão feitos oportunamente. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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