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PASQUALE CIPRO NETO
Os bagdalis e os somalis (ainda)
Na semana passada,
analisei a relação grafia/acentuação/pronúncia. O ponto de
chegada foi a palavra "bagdali",
adjetivo relativo a Bagdá. Expliquei que, se a grafia é "bagdali", a
pronúncia só pode ser "bagdalí",
com força no "i", como se faz com
"abacaxi", "perdi", "prometi" etc.
Abundantes em nossa língua,
as oxítonas terminadas em "i"
não são acentuadas. Opõem-se a
elas as paroxítonas terminadas
em "i", que, justamente por serem
raras, recebem o acento. Para que
a sílaba tônica de "bagdali" fosse
"da", seria necessária a presença
do acento agudo no "a".
Pois bem, publicada a coluna,
recebi esta interessante mensagem do leitor Nelson Stevani Júnior: "Fiquei surpreso quando
soube que as pronúncias corretas
para as pessoas ou coisas naturais
de Bagdá ou da Somália são "bagdali" e "somali". Quem ou como se
estabelece uma pronúncia? Que
lógica há em pronunciar, por
exemplo, "bagdali", e não "bagdáli", se o adjetivo é originário do
substantivo "Bagdá'? Que palavra
surgiu primeiro, "Bagdá" ou "bagdali'? Quem determina o quê? A
pronúncia determina a forma escrita, ou é o contrário?".
Caro Nelson, tentarei responder
a uma parte de sua pergunta.
Conflitos entre a pronúncia corrente e a recomendada por dicionários e gramáticas sempre houve. São exemplos disso as palavras "lêvedo", "boêmia", "néon",
"zângão" e "azálea", entre outras. Durante muito tempo, os dicionários se negaram a registrar o
que era mais do que corrente no
uso geral ("levedo", "boemia",
"neon", "zangão" e "azaléia", respectivamente). Quando muito,
registravam a forma mais usada
com a classificação de "popular".
O caso de "boêmia" é bem interessante. Os dicionários dizem
que esse substantivo (sim, substantivo) significa "vida alegre e
despreocupada" ("Aurélio"), "roda de intelectuais, artistas etc.
que leva a vida de modo bastante
hedonista e livre, bebendo e divertindo-se" ("Houaiss").
Ora, com esse sentido, o povo
diz "boemia" (com força no "i").
O povo usa "boêmia" como adjetivo ("vida boêmia", "pessoa boêmia"). Já imaginou Nélson Gonçalves cantando "Boêmia, aqui
me tens de regresso..."? E Vinicius
("Hoje eu saio na noite vazia numa boêmia sem razão de ser...")?
Rendidos à realidade, o
"Houaiss" e a última edição do
"Aurélio" registram muitos dos
pares prosódicos e gráficos ("boêmia" e "boemia", por exemplo).
Em alguns casos, o "Aurélio" limita-se a falar em "variação prosódica" (variação de pronúncia)
ou em "forma paralela", enquanto o "Houaiss" informa qual das
duas pronúncias é considerada
culta, erudita ou "mais correta".
O "Aurélio" ainda ignora a forma "neon", usadíssima, e só registra "néon" (com força no "e").
A questão é esta, caro Nelson: é
dever do dicionário registrar a
forma erudita ou culta, o que não
lhe tira o dever de registrar o que
tem uso mais do que vivo em determinada variedade da língua.
O caso de "bagdali", no entanto,
parece-me diferente, já que o emprego desse termo é circunstancial, o que nos impede de falar de
conflito entre isto e aquilo. Foi por
isso que, na semana passada, centralizei a discussão na relação
grafia/acentuação/pronúncia.
A questão ainda mereceria outros comentários, que serão feitos
oportunamente. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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