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GUERRA URBANA /REVOLTA
Garoto de 22 anos esperava a noiva em escadaria quando recebeu pelo menos cinco tiros; polícia diz que apenas prestou socorro
Moradores acusam PM de matar inocente
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
TOMÁS CHIAVERINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A sala da casa de um morador
do Jardim Filhos da Terra, na zona norte da cidade, é aberta para a
reportagem com solenidade. Tem
o cheiro acre de um açougue. De
um saco jogado no chão, quatro
amigos tiram um casaco vermelho e branco e uma camiseta vermelha ainda encharcados de sangue. Mostram três buracos no capuz e três nas costas. Lá fora, outros 55 moradores do bairro esperam para contar como morreu Ricardo Flauzino, 22. "Foi a polícia.
Eles mataram um menino de ouro. Mataram um garoto amado
por todos aqui", disse uma doméstica de 67 anos que fez questão de deixar de lado o jantar que
preparava para contar o que viu.
"Depois de matar Ricardo, os
policiais entraram aqui atirando
que nem loucos. Olha os buracos
de bala aqui", diz, apontando para perfurações recentes nas paredes dos predinhos do codomínio.
"Foi terror. Tinha uns dez meninos na rua, que podiam ter morrido também."
Uma vizinha afirma ter recolhido cápsulas deflagradas de pistolas .40 e 9 mm, que foram depois
entregues à polícia.
Revoltados com o assassinato
de Ricardo Flauzino e com a invasão violenta da polícia no bairro,
cerca de 300 moradores do Jardim Filhos da Terra reuniram-se
para protestar.
Às 15h, começou, meio espontaneamente: uns garotos incendiaram pneus e um sofá. Outros juntaram-se a eles. O grupo então se
dirigiu a uma praça, ponto final
do ônibus Jardim Filhos da Terra.
Os jovens pediram aos passageiros que descessem do veículo: "Isso é um protesto. Saiam do busão." Em seguida, atearam fogo.
Segundo o motorista Leomir Luiz de Andrade, 42, um grupo de aproximadamente 50 jovens cercou o ônibus da Viação Sambaíba e começou a apedrejá-lo." Fomos pegos de surpresa, de repente era pedra para todo lado. Depois os vândalos entraram no carro e quando viram que não tinha mais ninguém no carro jogaram álcool e fogo em tudo" conta Andrade. A PM e o corpo de bombeiros foram acionados mas ninguém foi preso.
Segundo a polícia em nenhum dos ataques houve feridos, e não há indícios de que eles tenham relação com o PCC.
Moradores da região que não quiseram se identificar disseram ao Agora que os atos de vandalismo ocorreram em protesto contra o assassinato de um jovem de 22 anos em uma rua do bairro. Ele teria sido executado por homens encapuzados na noite de anteontem. Os policiais de plantão na noite de ontem disseram não ter acesso ao registro de ocorrências do horário do suposto crime.
A polícia interveio. Conseguiu
dissolver a manifestação e apagar
o incêndio. Restou o esqueleto fumegante do ônibus. Enquanto isso, os jovens recolheram-se ao
conjunto de prédios do Jardim Filhos da Terra. Para chamar a atenção dos helicópteros da imprensa,
escreveram no asfalto, em letras
de mais de metro de altura: "Assassinos de farda. Reportagem
Já." Três garotos acabaram detidos pela polícia, mas foram logo
depois liberados.
A turma dos revoltosos já estava
revoltada o suficiente, mas a temperatura elevou-se quando, assistindo à TV, viu seu protesto ser
apresentado por uma emissora
como tendo sido causado por
"partidários do PCC". "Nós não
somos criminosos. Também não
temos nada a ver com a facção.
Não tem nada a ver. Tudo o que a
gente quer é denunciar essa tragédia que a polícia causou."
Casamento
Segundo amigos e parentes, Ricardo Flauzino gostava de jogar
bola com os amigos do bairro
construído em regime de mutirão
durante o governo da ex-prefeita
Luiza Erundina. Parou de freqüentar as peladas quando arrumou emprego de motorista em
uma fábrica de bolsas. O objetivo
era juntar um dinheirinho para
casar com sua grande paixão,
uma moça que também mora no
Filhos da Terra. A união estava
marcada para acontecer no dia 8
de julho. Ontem, ele assinaria o
contrato da casa em que pretendia iniciar a nova família.
A história de Flauzino acabou
anteontem às 22h30, quando foi,
como sempre, esperar pela noiva
no alto da escadaria que sobe da
avenida Antonello da Messina para o conjunto de apartamentos do
Filho da Terra. A moça desembarcaria do ônibus e, protegida
pelo noivo, seria levada até sua casa.
Sentado, Flauzino esperava,
quando, de repente, de um veículo da Força Tática da PM, desceram pelo menos seis homens. Estavam encapuzados, a farda oculta por blusões negros.
Foram esses homens, que ocupavam o veículo da Força Tática
com números "M-3074", segundo descreveram os vizinhos, que
teriam baleado Flauzino, rapaz
que nunca andou armado, não
bebia e não se envolvia nas "correrias dos bandidos do bairro", na
definição de um morador.
Com Ricardo já ferido e jogado
de bruços no mato, os policiais se
afastaram. Até que o morador de
um dos predinhos do Filhos da
Terra deu o alarme: "Tem um cara caído no escadão", gritou.
Um jovem aproximou-se para
ver quem era, virou o corpo e
identificou: "É o Ricardo."
Nesse momento, os encapuzados se reaproximaram e intimaram o recém-chegado: "Que é que
você aprontou?"
Como outros rapazes conhecessem Ricardo e o jovem que o
identificara, os policiais, segundo
os depoimentos dos moradores,
se descontrolaram e começaram a
correr, atirando, para dentro do
conjunto de predinhos.
Uma vizinha disse que estava na
janela olhando a filha que voltava
a pé do trabalho, quando policiais
usando máscaras tomaram as
ruas do bairro. Ela conta que gritou primeiro para os os homens
armados se afastarem e, depois,
para que sua filha se abaixasse.
"Ela conseguiu se esconder ali,
embaixo daquela escada e, depois, correu para casa", lembra a
moradora.
Moradores do bairro dizem ter
visto quando os homens armados
que entraram no conjunto desfizeram-se das máscaras e dos blusões negros. "Eles estavam meio
escondidos atrás daquele prédio
ali." Em seguida, os policiais teriam se reapresentado à vizinhança, agora oferecendo ajuda para
levar o jovem ferido ao hospital.
A mãe de Ricardo Flauzino diz
que, apenas nesse momento, viu o
filho. "Não vi quem atirou, não sei
de nada", disse ela. "A única coisa
que posso dizer é pedi para ir junto com o Ricardo para o hospital
São Luiz Gonzaga, no Jaçanã, mas
os policiais não deixaram."
Os vizinhos assistiram à remoção do jovem. "Eles o arrastaram
como um bicho e o jogaram na
viatura."
Às 2h de manhã de ontem, o irmão da noiva de Ricardo aproximou-se da mãe dele, na porta do hospital. "Ele chegou em mim e falou que meu filho não estava mais... Que tinha falecido."
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