São Paulo, domingo, 17 de maio de 2009

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GILBERTO DIMENSTEIN

O protesto da privada inteligente


O que se pretende colocar no ralo são as informações que não fazem sentido porque são apresentadas isoladamente


FORMADOS em ciência da computação em São Paulo, três amigos elaboraram um protesto bem-humorado contra o acúmulo de lixo da internet, cansados das bobagens e obviedades dos blogs -um besteirol agravado ainda mais com a disseminação do Twitter. A brincadeira acabou na invenção de uma privada inteligente.
Treinados em desenvolvimento de programas para a internet, Arthur Lima, Daniel Dias e Eduardo Alves moram juntos e, nas horas vagas, tocam um laboratório, em que pedem colaboração a colegas ou a qualquer um que deseje participar de um experimento -deram o nome a isso de "colaboratório". Nesse "colaboratório", desenvolveu-se um sistema de sensores conectados à privada capaz de acompanhar o movimento da água.
Antes mesmo que o indivíduo saia do banheiro, o ato fisiológico estará registrado, em palavras, numa página da internet, acessível, portanto, a qualquer um em qualquer parte do mundo. "Como somos favoráveis ao software livre, deixamos o código aberto", brinca Daniel Dias, que resolveu batizar a invenção de "Shit Happens".
A brincadeira é um jeito de tentar entender, seriamente, a decisão anunciada na semana passada de tornar obrigatório um novo exame para aprovação do ensino médio. É uma das mais importantes decisões lançadas nos últimos tempos para tentar reduzir o lixo informativo que atormenta desnecessariamente os jovens -e aposto que terá impacto no jornalismo.
A indicação do Enem -até agora só um mecanismo para entrada nas faculdades -como prova obrigatória para a conclusão do ensino médio significa mais do que mudar o currículo das escolas. O essencial é a mudança do olhar sobre como transmitir conhecimento aos jovens. Se eu pudesse resumir em poucas palavras os documentos divulgados na semana passada sobre o que será o Enem, diria o seguinte: os estudantes serão (ou deveriam ser) treinados para aprender a selecionar o que é relevante, conectando as informações ao cotidiano. Explicando melhor: noções de química, física, biologia e história devem ser usadas para entender, por exemplo, o aquecimento global. O que se pretende colocar no ralo são as informações que não fazem sentido porque são apresentadas isoladamente -é algo tão inútil quanto o jovem que, no Twitter, posta algo como "escovei os dentes", "acordei", "jantei" -o tipo de inutilidade que acabou gerando a invenção do "Shit Happens". Mas por que, afinal, a mudança do currículo escolar terá impacto no jornalismo?
À medida que se valorize o cotidiano para concatenar as diversas matérias e o vestibular dê cada vez mais ênfase a esse olhar, a boa educação será avaliada, entre outras coisas, pela habilidade de os professores lidarem com a comunicação. Um fato exposto no noticiário não será usado apenas ocasionalmente num trabalho escolar, como já ocorre. Será uma das principais matérias-primas para as aulas. Quanto melhor um meio de comunicação souber contextualizar um fato, terá mais chance de virar hábito dos leitores, ouvintes e telespectadores. Existe aqui um encontro com o jornalismo -até porque a imprensa também é vítima e, simultaneamente, vilã no efeito "Shit Happens". Há uma crescente torrente de informações que dificulta a capacidade de seleção do que é relevante. A sobrevivência dos jornais estará muito mais vinculada à sua capacidade de dizer o que importa, com precisão e contexto, do que a dar furos.
A conclusão disso pode parecer hoje um pouco estranha, mas com o tempo será rotina. Os meios de comunicação vão absorver um pouco do jeito de ser da escola, mais preocupados com o didatismo e processos cognitivos de seus leitores, ouvintes ou telespectadores. Será ainda mais disseminada, na internet, a possibilidade de tirar dúvidas sobre as matérias ou discutir diretamente com os repórteres e colunistas -na prática é um ensino a distância. Ao mesmo tempo, as escolas terão ingredientes de Redação de jornal, tamanha a necessidade de os professores e alunos lidarem com as notícias como eixo estruturante do currículo e usarem recursos de comunicação para elaborar trabalhos ou pesquisas.
Nada disso será nem rápido nem fácil. Se os docentes já não sabem lidar direito (para dizer o mínimo) com o atual currículo, imagine um plano de aula montado em eixos transversais, inter e multidisciplinares. As escolas de elite já vêm realizando, há muito tempo, esse tipo de inovação, com ótimos resultados isolados -faltava a mudança do vestibular para que tivessem mais estímulo. A imprensa terá de aprender a ser mais didática e colaborativa com seus leitores, além de investir em menos e mais importantes notícias.
No final, tanto o jornalismo como a escola estarão melhores -e muita notícia e livro escolar irão diretamente para a privada.
PS: Dou outros detalhes no meu site (www.dimenstein.com.br) sobre o funcionamento do "Shit Happens".
gdimen@uol.com.br


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