São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 2002

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Alexandre Campbell/Folha Imagem
Vera Lúcia Flores Leite (à esq.) e Maria da Aparecida Siqueira, cujos filhos estão desaparecidos


DESAPARECIDOS

Rio de Janeiro tem, de janeiro de 99 até maio deste ano, cerca de 2.150 casos ainda não solucionados

Caso Tim Lopes expõe drama de famílias

FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO

A secretária Vera Lúcia Flores Leite, 53, há 12 anos procura o corpo da filha Cristiane: "Uma coisa é perder uma pessoa e fazer o enterro. Outra, muito pior, é não ter nem corpo para enterrar".
A pensionista Maria de Almeida Carelli, 72, define o desaparecimento do filho Jorge, em 1993, citando um trecho da canção ("Pedaço de Mim", de Chico Buarque) que nem conhece: "Perdi um pedaço de mim".
Mães à procura dos filhos, as duas agora acompanham pela televisão as buscas ao corpo do repórter Tim Lopes, da Rede Globo, desaparecido no dia 2 na favela Vila Cruzeiro (zona norte). O jornalista foi torturado, "julgado" e morto por traficantes da favela.
A polícia aguarda os testes de DNA para confirmar se os restos mortais de Lopes, que tinha 51 anos, estavam no cemitério clandestino descoberto no alto da favela da Grota (Penha, zona norte).
O caso do jornalista e a descoberta do cemitério clandestino foram os últimos alertas para um problema que tem se repetido nos últimos anos no Rio: o desaparecimento de pessoas cujos corpos nunca foram achados.
De acordo com o delegado Paulo Passos, titular da Delegacia de Homicídios, há no Estado pelo menos 2.148 casos de desaparecimentos não-solucionados de janeiro de 1999 até maio deste ano.
Só neste ano, foram 329 casos. A polícia reconhece, porém, que muitos não são nem registrados, principalmente se o sumiço tem relação com o tráfico de drogas.
Oficialmente, o governo federal reconhece que 136 pessoas desapareceram no Brasil durante o período do regime militar (1964-1979), mas outros casos ainda estão sendo analisados.

Os 11 de Acari
A filha de Vera Leite, Cristiane, estava entre os 11 jovens desaparecidos em um passeio num sítio em Magé (60 km do Rio), em 1990. Conhecido como o caso dos 11 de Acari (favela da zona norte onde os jovens moravam), o episódio é um dos mais escabrosos da história policial do Rio: dizendo-se policiais, um grupo invadiu o sítio onde os jovens estavam exigindo jóias e dinheiro.
Como nada encontraram, disseram que os levariam para a delegacia. Nem os jovens nem seus corpos jamais apareceram. As mortes estariam relacionadas à ação de um grupo de extermínio formado por policiais militares.
No entanto, sem os corpos, o caso nunca virou processo. O inquérito continua aberto. Doze anos e muitas escavações depois, Vera já ouviu até dizer que os corpos de sua filha e dos amigos foram comidos por porcos e leões criados em sítios vizinhos.
"A polícia está buscando o corpo do Tim Lopes, isso é o certo. Mas só acontece porque ele era uma pessoa conhecida. Também queríamos o mesmo empenho com nossos filhos. Vou continuar procurando minha filha, viva ou morta. Quero um dedinho que seja, para poder fazer o enterro."

Vivo ou morto
Como Vera, outras mães contam histórias misturando a esperança de que eles estejam vivos e a quase certeza de que estão mortos, e suas mortes, impunes.
A mãe de Jorge Carelli, Maria, revira os mendigos na rua para saber se um deles é seu filho. Ele falava ao orelhão e foi levado por policiais em uma blitz em Manguinhos (zona norte), em agosto de 1993. Anos depois, uma condenada por sequestro contou ter visto Carelli ser torturado na Divisão Anti-Sequestro. Seu corpo nunca foi encontrado, e ninguém foi condenado por falta de provas.
O digitador José Siqueira desapareceu em 1997, quando tinha 24 anos. Ele teria sido visto pela última vez ao ser levado por traficantes do morro Santa Marta, em Botafogo (zona sul). Seu corpo nunca foi encontrado. "Estou preparada para receber meu filho vivo ou morto. Eu quero pelo menos o corpo dele", afirma a mãe do rapaz, Maria da Aparecida Siqueira.
Também nunca foi encontrado o corpo de Jurandir Ferreira de Lima, presidente da associação de moradores do morro do Chapadão, na Pavuna (zona norte), desaparecido em 1995.
Sua mãe, Beatriz Lima, conta que já revirou delegacias, hospitais, necrotérios, asilos e abrigos em busca de notícia. Perguntou até aos traficantes do morro se haviam matado o filho dela. Sem resposta e com medo, mudou-se.

Busca sem fim
Para a família de um desaparecido, a busca pelo corpo nunca acaba, só diminui. "Chega um momento em que a gente já foi a todos os lugares", diz a professora Elizabeth Silveira e Silva, presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.
O irmão de Elizabeth, Luiz René Silveira e Silva, está na lista oficial de desaparecidos durante o regime militar no Brasil. Ele era um dos participantes da guerrilha promovida pelo PC do B na região do rio Araguaia (sul do Pará) de 1972 a 1975 e dizimada pelas Forças Armadas.
Elizabeth conta que sua mãe, embora racionalmente convivesse com a idéia da morte do filho, por nunca ter visto o corpo sempre dava sinais de que tinha esperança de vê-lo novamente -recusava-se, por exemplo, a mudar de endereço e de telefone.
A presidente do grupo Tortura Nunca Mais afirma que vários casos de desaparecimento podem estar relacionados não só ao tráfico, mas à ação policial.
"O desaparecimento foi incorporado à prática repressiva com a ditadura militar. E agora vemos esses cemitérios clandestinos também no alto dos morros. Quem são esses mortos?", questiona. Quem são esses mortos?



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