São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2008

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Militares dizem ter entregue jovens a traficantes no Rio

Tenente, sargento e soldado afirmam que queriam punir rapazes que os desacataram; jovens foram mortos e torturados

Numa das versões, tenente teria dito para um dos traficantes do morro da Mineira: "Trouxe um presentinho pra vocês"

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

SÉRGIO TORRES
DA SUCURSAL DO RIO

Um tenente, um sargento e um soldado do Exército afirmaram, em depoimento no Comando Militar Leste, ter entregue três rapazes do morro da Providência (centro do Rio) a traficantes do morro da Mineira, dominado por facção criminosa rival, na manhã de sábado. Os jovens -de 17, 19 e 24 anos- foram torturados e mortos.
Pelo relato que chegou ontem ao Ministério da Defesa e ao Comando do Exército, em Brasília, esses três militares, os primeiros a prestar depoimento, e os outros oito presos por envolvimento nas mortes cometeram "crime premeditado", pois foram até os criminosos para entregar as vítimas e sabendo das conseqüências.
A ação ocorreu, segundo esses relatos, porque os três rapazes desacataram os militares.
Ontem, moradores da Providência protestaram várias vezes. À noite, entraram em confronto com o Exército.

Presentinho
O tenente Vinícius, o sargento Maia (os sobrenomes não foram divulgados) e um soldado deram detalhes de como foi articulada a operação, na madrugada de sábado. Numa das versões, o tenente, de 25 anos, teria dito para um dos traficantes do morro da Mineira, antes de lhe entregar os rapazes: "Trouxe um presentinho pra vocês".
O tráfico na Mineira é dominado pela ADA (Amigo dos Amigos), facção inimiga do CV (Comando Vermelho), que atua na Providência. Não há indícios de que os mortos integravam nenhum desses grupos.
Nos depoimentos, os militares disseram que não imaginavam que David Wilson Florêncio da Silva, 24, Wellington Gonzaga Ferreira, 19, e Marcos Paulo Campos, 17, seriam mortos pelos traficantes. Um teria dito que queriam "dar um susto" nos rapazes. Outro, que seria "um pequeno castigo".
Segundo afirmaram, ao amanhecer de sábado, os jovens os desacataram na praça Américo Brum, no alto da favela.
Segundo o delegado, os militares abordaram os rapazes porque um deles tinha na cintura um volume semelhante a uma arma. Os rapazes tinham acabado de descer de um táxi, com uma moça. Voltavam para casa, vindos de um baile funk.
Os militares revistaram um dos jovens e encontraram apenas um celular. Ao fim da revista, os rapazes e as pessoas que se juntaram ao redor começaram a protestar. Teria havido brigas e troca de ofensas.
Chefe da tropa no local, o tenente decidiu deter os três por suposto desacato. Os rapazes foram levados ao quartel da Companhia de Comando, perto de um dos acessos à Providência e base da operação que desde dezembro o Exército realiza na comunidade.
O caso foi submetido ao capitão Ferrari que, àquele momento, respondia pela Delegacia Judiciária Militar do quartel. O oficial liberou os rapazes, pois não concordou com a avaliação de que houvera desacato.
Sentindo-se desautorizado diante de seus subordinados, conforme os depoimentos, o tenente perguntou a um soldado que nem é da sua tropa, mas que mora naquela área, qual seria o morro mais perigoso para deixar os detidos. A resposta foi o morro da Mineira, a 1,5 km do quartel. Ele então seguiu para lá de caminhão, com os três, o sargento Maia e nove militares.
Há duas versões para o que veio a seguir: numa, do sargento Maia, o grupo parou na entrada da favela, ele foi negociar com traficantes armados e voltou. Disse ao tenente que o combinado era que os bandidos "só dariam uma surra".
Na outra versão, do soldado, Maia voltou com um traficante. O tenente teria, então, conversado diretamente com o bandido e falado do "presentinho".
Segundo o delegado responsável pelo inquérito, Ricardo Dominguez, dezenas de pessoas viram quando os militares entregaram os três rapazes para os bandidos. Os corpos dos três foram encontrados no domingo, num aterro sanitário.
Os nomes dos militares acusados -sete soldados, três sargentos e um tenente, todos do 1º Batalhão de Infantaria Motorizada, na Vila Militar (zona oeste)- não foram divulgados.
O coronel Carlos Alberto Barcellos, chefe da Comunicação Social do CML, embora não revelasse o teor dos depoimentos, não desmentiu o delegado. "Se o delegado disse, foi o que aconteceu. Foi uma iniciativa isolada de um militar que não procedeu como deveria."


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