São Paulo, sábado, 17 de julho de 2004

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LETRAS JURÍDICAS

Denuncismo entre o estilingue e a vidraça

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Estou de pleno acordo com o presidente Lula da Silva quando diz que o denuncismo não é bom para a democracia. Digo mais: o denuncismo interessa ao culpado e ofende o inocente. Antes, porém, é preciso que nos entendamos, pois denuncismo não se encontra nos dicionários. A informação responsável, com base em fatos pelo menos razoavelmente comprováveis, é a boa denúncia. Constitui dever de todo cidadão. A informação desprovida de veracidade mínima ou desacompanhada de qualquer elemento de prova, em particular quando difundida por órgãos da mídia, é denuncismo.
Denuncismo, portanto, é a informação escandalosa, sem base, transmitida aos meios da comunicação social, em particular a televisão, para prejudicar alguém. Favorece o culpado e sacrifica a sociedade. A longo prazo, trará prejuízos irreparáveis para a mídia, com a reiterada condenação dos inocentes queimados pelo fogo do escândalo público antes de terem reconhecida a inocência. São prejudicados pela nossa tendência de dar crédito ao que dizem de mau a respeito de alguém.
O dano é conseqüente de outro mal contemporâneo: o declaracionismo. A mídia ouve alguém provido de alguma autoridade pública sem exercer adequado juízo crítico sobre os fatos serem verdadeiros ou falsos. Basta a convicção de ter sido correta a reprodução do declarado. Isso, porém, é insuficiente. Bom jornalismo checa a informação, verifica os dados, ainda que a apuração integral surja no dia seguinte, e se corrige. O mau jornalismo, sob a desculpa da urgência do fechamento, reproduz a declaração e se esquece de a corrigir.
O "New York Times" e esta Folha, há algum tempo, deram bom exemplo desse erro e tentaram corrigi-lo. O jornal americano, por ter acolhido informações do governo Bush sem as apurar, admitiu, em editorial, que foi na onda da patriotada irresponsável para só muito depois constatar que as informações eram baseadas em dados falsos. A Folha acolheu dados aparentemente verdadeiros sobre índices de mortalidade no Brasil. Não eram. Corrigiu-os não em simples nota de "erramos", mas em reportagem reconhecendo a insuficiente verificação feita sobre os dados recebidos. Contudo, no dia-a-dia da notícia, isso raramente acontece, no Brasil e no resto do mundo, sobretudo quando o atingido é pessoa qualquer, é um "uomo qualunque", como diria Papini, o joão-ninguém.
Além de ofender a presunção constitucional da inocência, o denuncismo e sua contraparte, o declaracionismo, geralmente atingem e denigrem as famílias dos denunciados, crianças inocentes nas escolas, parentes no serviço e até amigos em geral. Já o disse e repito: estou com Lula da Silva na crítica referida de início, mas uma ressalva é necessária. Alguns dos modos pelos quais o presidente chegou ao poder foram o declaracionismo e o denuncismo, feitos por companheiros seus quando eram oposição, ajudados pela desatenção da mídia no verificar cuidadosamente as informações prestadas. Nem todos os seus companheiros foram por esse caminho, seja reconhecido. Lembro os Josés (Genoino e Eduardo), as ex-petistas Luiza e Heloisa. Foram exceções louváveis, assim como o próprio Lula. Um dos traços mais fortes da crítica ao denuncismo tem conteúdo ético, só percebido quando se sofrem seus efeitos. Não há nada como um dia depois do outro para perceber a diferença entre ser estilingue ou atiradeira e ser vidraça. Ser vidraça é muito chato. Lula tem razão.


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