São Paulo, sábado, 17 de julho de 2010

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MINHA HISTÓRIA CRISTIANE BUENO, 43

Dor sem data


Aprendi a deixar de ser arrogante com a vida. Vesti a minha impotência. Lidar com a perda é a construção de uma nova vida

(...)Depoimento a

ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO

Não quero transformar o 17 de julho -data do acidente no qual perdi meus dois filhos, Caio, então com 11 anos, e Rafaela, 17- em um dia triste para sempre.
Sofri ontem, posso sofrer amanhã. Enfim, é doloroso todo dia. Não só hoje, no Natal, no Dia das Mães ou no aniversário. Não gosto de botar hora e data para sofrer.
Como é complicado ficar no Brasil nesse período, dei uma viagem para Nova York para o meu sobrinho de 15 anos. Embarcamos [na quarta] para uma semana de férias. Será saudável voltar a lidar com um adolescente.
Já fiz outras viagens de avião. Lógico que na aterrissagem penso no que meus filhos sentiram no momento do acidente. Eles gritaram? Estavam conscientes?
O recado de ver aquele avião queimando com meus filhos dentro sem poder fazer nada foi: "Você não manda em nada". Aprendi a deixar de ser arrogante com a vida. Vesti a minha impotência. Mas descobri o poder de cuidar de mim. Lidar com a perda é a construção de uma nova vida. É descobrir capacidades e vestir pele nova.
Vivo de saudade, mas não me pauto pela tristeza. O primeiro ano foi só correr: enterrá-los, mudar de casa e ficar com raiva do mundo. Só na missa de um ano do acidente realizei a perda. O segundo foi um refazer. Neste terceiro, me pergunto: é por aí?
O que me dá serenidade é acreditar que vou reencontrar meus filhos. Leio livros espíritas, vou à missa aos domingos e faço terapia.

EM SONHO
Antes de dormir, peço a Deus para sonhar com Caio e Rafa. Assim, posso abraçá-los. Eles aparecem como os deixei no aeroporto para ir de férias para Porto Alegre.
Sinto saudade deles e do que perdi. Não vou ver a formatura nem o casamento deles. Não vou ter netos. Tenho a sorte de, como estilista, poder trabalhar em casa. Conto com uma estrutura que me permitiu dar uma pirada.
Meu luto teve fases. Ora estava superaberta, entrava no Orkut para conversar com os amigos dos meus filhos. Ora não queria falar com ninguém. Não troco figurinha com meu ex-marido. Respeito o pai dos meus filhos, mas pensamos de maneira oposta.
Ainda me protejo das lembranças. Nunca abri as caixas de fotos. Na semana passada, fui pegar uns documentos e dei de cara com a certidão de óbito.

ALEGRIA TRISTE
Outro dia, passei pelo local do acidente com o meu namorado. Evito a região. É esquisito ver aquele muro e lembrar que meus filhos morreram queimados ali.
Parece que estou forte, levando a vida, mas não é tão simples. É uma alegria triste. Não quero saber de indenização. O que sinto não dá para medir em dinheiro. Acho que não existe um culpado. Existem responsabilidades de quem oferta esse serviço, mas não busco criminosos.
Não tenho contato com parentes de outras vítimas. Tentei, mas não me trouxe acalento. Quando falo dos meus filhos, não quero me fazer de vítima. É a minha história. Gostaria que ficassem à vontade para dizer: "Não sei o que te falar". Simples, assim.
Saio, viajo e me ocupo para não fazer da tragédia o mote da minha vida.
Tento me erguer sem chutar a boca de ninguém. Tem gente que fica amargurada. Respeito todas as formas de luto, mas sem machucar outros. Ninguém, ninguém, tem culpa.


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