|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MINHA HISTÓRIA CRISTIANE BUENO, 43
Dor sem data
Aprendi a deixar de ser arrogante com a vida. Vesti a minha impotência. Lidar com a perda é a construção de uma nova vida
|
(...)Depoimento a
ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO
Não quero transformar o
17 de julho -data do acidente no qual perdi meus dois filhos, Caio, então com 11
anos, e Rafaela, 17- em um
dia triste para sempre.
Sofri ontem, posso sofrer
amanhã. Enfim, é doloroso
todo dia. Não só hoje, no Natal, no Dia das Mães ou no
aniversário. Não gosto de botar hora e data para sofrer.
Como é complicado ficar
no Brasil nesse período, dei
uma viagem para Nova York
para o meu sobrinho de 15
anos. Embarcamos [na quarta] para uma semana de férias. Será saudável voltar a lidar com um adolescente.
Já fiz outras viagens de
avião. Lógico que na aterrissagem penso no que meus filhos sentiram no momento
do acidente. Eles gritaram?
Estavam conscientes?
O recado de ver aquele
avião queimando com meus
filhos dentro sem poder fazer
nada foi: "Você não manda
em nada". Aprendi a deixar
de ser arrogante com a vida.
Vesti a minha impotência.
Mas descobri o poder de cuidar de mim. Lidar com a perda é a construção de uma nova vida. É descobrir capacidades e vestir pele nova.
Vivo de saudade, mas não
me pauto pela tristeza. O primeiro ano foi só correr: enterrá-los, mudar de casa e ficar
com raiva do mundo. Só na
missa de um ano do acidente
realizei a perda. O segundo
foi um refazer. Neste terceiro,
me pergunto: é por aí?
O que me dá serenidade é
acreditar que vou reencontrar meus filhos. Leio livros
espíritas, vou à missa aos domingos e faço terapia.
EM SONHO
Antes de dormir, peço a
Deus para sonhar com Caio e
Rafa. Assim, posso abraçá-los. Eles aparecem como os
deixei no aeroporto para ir de
férias para Porto Alegre.
Sinto saudade deles e do
que perdi. Não vou ver a formatura nem o casamento deles. Não vou ter netos. Tenho
a sorte de, como estilista, poder trabalhar em casa. Conto
com uma estrutura que me
permitiu dar uma pirada.
Meu luto teve fases. Ora estava superaberta, entrava no
Orkut para conversar com os
amigos dos meus filhos. Ora
não queria falar com ninguém. Não troco figurinha
com meu ex-marido. Respeito o pai dos meus filhos, mas
pensamos de maneira oposta.
Ainda me protejo das lembranças. Nunca abri as caixas
de fotos. Na semana passada,
fui pegar uns documentos e
dei de cara com a certidão de
óbito.
ALEGRIA TRISTE
Outro dia, passei pelo local do acidente com o meu
namorado. Evito a região. É
esquisito ver aquele muro e
lembrar que meus filhos
morreram queimados ali.
Parece que estou forte, levando a vida, mas não é tão
simples. É uma alegria triste.
Não quero saber de indenização. O que sinto não dá para
medir em dinheiro. Acho que
não existe um culpado. Existem responsabilidades de
quem oferta esse serviço,
mas não busco criminosos.
Não tenho contato com parentes de outras vítimas. Tentei, mas não me trouxe acalento. Quando falo dos meus
filhos, não quero me fazer de
vítima. É a minha história.
Gostaria que ficassem à vontade para dizer: "Não sei o
que te falar". Simples, assim.
Saio, viajo e me ocupo para não fazer da tragédia o mote da minha vida.
Tento me erguer sem chutar a boca de ninguém. Tem
gente que fica amargurada.
Respeito todas as formas de
luto, mas sem machucar outros. Ninguém, ninguém,
tem culpa.
Texto Anterior: Vira-lata: Cão percorre 80 km e volta para antiga dona Próximo Texto: Resumo Índice
|