São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Bush assina resolução que o permite atacar..."

O radialista lê a nota internacional: "O presidente dos Estados Unidos, George Bush, acaba de assinar a resolução que o permite atacar o Iraque...". Lêem-se e ouvem-se com frequência construções como essa, em que o pronome "o", usado para substituir pessoa, é associado ao verbo "permitir". Na construção tida como padrão, o pronome "o" deve ser substituído pelo pronome "lhe": "Bush assina resolução que lhe permite atacar...".
Vejamos por quê. Como se sabe, na língua padrão o pronome "lhe" substitui complemento verbal ou nominal regido por preposição; o pronome "o" substitui complemento direto, isto é, não regido por preposição. Assim, se se diz "Faz tempo que não vejo o diretor", diz-se "Faz tempo que não o vejo" (o pronome "o" substitui "o diretor"). Se se diz "Diga ao diretor que quero vê-lo", diz-se "Diga-lhe que quero vê-lo" (o pronome "lhe" substitui "ao diretor").
Voltemos ao verbo "permitir". Com ele, seria possível construir uma frase como esta: "O radar permite ao navegante detectar obstáculos a grandes distâncias". O exemplo é do "Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa", do professor Domingos Paschoal Cegalla. Note que em "permite ao navegante" o verbo "permitir" rege a preposição "a" ("ao" = "a" + "o"). Se substituíssemos "ao navegante" por um pronome, teríamos "O radar permite-lhe detectar obstáculos..." (ou "O radar lhe permite...").
E de onde viria o inadequado "o" que o radialista empregou em "que o permite atacar" e que uma cronista, citada por Cegalla, usou em "Sua condição de militar não o permite fazer avaliações políticas"? Trata-se, provavelmente, de apenas mais um exemplo do processo de contaminação que se verifica na relação dos verbos com os seus complementos.
O verbo "permitir" talvez esteja sob influência de "autorizar", com o qual tem afinidade semântica. Com esse verbo, é possível dizer algo como "O Congresso autoriza o presidente a atacar", que se transformaria em "O Congresso o autoriza a atacar", se empregássemos o pronome oblíquo.
A esta altura, convém deixar claro que, em se tratando de língua padrão, "permitir" e "autorizar", semanticamente próximos, impõem procedimento distinto no que diz respeito à relação com os seus complementos: "O Congresso permite a Bush atacar o Iraque" transforma-se em "O Congresso lhe permite (ou "permite-lhe') atacar o Iraque"; "O Congresso autoriza Bush a atacar o Iraque" transforma-se em "O Congresso o autoriza (ou 'autoriza-o') a atacar o Iraque".
Posto isso, só me resta rogar ao Criador que nos poupe de mais uma lamentável e inequívoca constatação de que a humanidade não deu certo.
 

A coluna da semana passada ("Obrigados nós") deu o que falar. Alguns leitores disseram que, apesar de correta, a forma "Obrigado/a eu" não os seduz. Não há problemas, caros leitores. Não faltam alternativas: "Sou eu que agradeço", "Não há de quê", "Por nada" etc. O que não faz muito sentido é dizer "Obrigado você", forma com a qual (literalmente) apenas se confirmaria que a pessoa que nos fez o favor continua obrigada a fazer outros. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail - inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Mortes
Próximo Texto: Trânsito: Al. dos Arapanés é alternativa à av. Ibirapuera
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.