São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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BOTICA MODERNA

Com mais farmácias, variedade de produtos e problemas na fiscalização, setor registra casos graves e até mortes

Expansão eleva risco de remédio manipulado

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Cristiane Ferracine, 25, prepara fórmula de shampoo em farmácia de manipulação de São Paulo


LAURA CAPRIGLIONE
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

Preços mais baratos, balconistas gentis, atendimento personalizado, decoração acolhedora e a oferta de qualquer tipo de remédio, mas sempre confeccionado artesanalmente. Com esses chamarizes, as farmácias de manipulação vêm conhecendo um avanço sem precedentes. Há cinco anos, eram 3.100 em todo o país. Hoje, contam-se 5.356, um crescimento de 73%. As farmácias e drogarias convencionais são 56 mil.
Responsáveis por um faturamento anual de R$ 1,3 bilhão, ou 9% de todo o mercado de remédios brasileiro, os laboratórios das farmácias de manipulação preparam desde florais de Bach até anticonvulsivos e hormônios.
No meio de tanta diversidade, essas farmácias prestam um serviço essencial: fazem remédios em dosagens específicas para bebês (que não podem usar dosagens de adultos), atendem a pacientes que não podem ou não conseguem tomar o medicamento na forma como ele se apresenta industrialmente, ou, caso ainda mais comum, preparam fórmulas em apresentações específicas para um determinado paciente.
No entanto, o crescimento do setor, associado a dificuldades de fiscalização pelos órgãos sanitários, tem feito crescer os riscos aos usuários. Não que esse risco seja exclusividade do setor. Basta lembrar de casos em que a indústria farmacêutica errou, e feio.
O remédio de contraste radiológico Celobar (do laboratório Enila) matou pelo menos 16 brasileiros em 2003. As pílulas anticoncepcionais Microvlar (da Schering), por falta do princípio ativo, ocasionaram centenas de gravidezes indesejadas. Mais recentemente, o antiinflamatório Vioxx (da Merck), que aumentava o risco de derrames e problemas cardíacos em usuários contínuos, foi retirado do mercado.
Acontece que esse tipo de falha de conseqüência grave tem ocorrido também com medicamentos manipulados. Com base em informações coletadas entre 2000 e 2003, o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) comprovou, entre as denúncias contra remédios manipulados, 27 ocorrências graves, que levaram a óbitos, comas e intoxicações. Onze ocorreram com crianças. Cinco morreram.
Esses casos são exceções. Uma farmácia média de manipulação avia mensalmente cerca de 50 receitas com princípios ativos que oferecem algum risco se mal formulados. Como são 5.356 farmácias, são 267,8 mil receitas por mês. Ou mais de 3 milhões em um ano. Ainda que os 27 casos tivessem ocorrido em um só ano, não haveria mais do que 0,0009% de chance de ocorrer algo grave com tais remédios. Em quatro anos, essas chances caem para 0,0002%.
"Esses são apenas alguns dos casos mais graves de reações adversas ocorridas pelo uso de medicamentos manipulados e que deram entrada no INCQS. A idéia era exemplificar a gravidade da manipulação de medicamentos em farmácias magistrais", explica a pesquisadora da Fiocruz Maria do Carmo Miranda.
São riscos assim que vêm obrigando autoridades sanitárias, médicos, farmacêuticos, fabricantes e importadores de insumos a se sentar juntos para discutir a regulamentação do setor.
O exemplo da artesã Ana Maria Assumpção, 51, é eloqüente a respeito dos atrativos das farmácias de manipulação: "Vou à farmácia de manipulação para fazer um antidepressivo e para uma fórmula para artrite que tomo há anos", conta. Ela usa o cloridrato de sertralina, o princípio do antidepressivo Zoloft, e paga R$ 41 por 120 comprimidos.
Nas drogarias, 20 comprimidos de Zoloft (um sexto do que Ana leva para casa) custam, em média, R$ 65. Os mesmos 120 comprimidos sairiam, portanto, por R$ 390 -quase dez vezes o que ela paga pela formulação manipulada.
Já quanto ao remédio para artrite, que toma há quase 30 anos, a escolha da farmácia de manipulação decorre da praticidade: "Meu médico faz um coquetel. A fórmula tem a medicação para artrite, outra para osteoporose, outra para colesterol e, se a mistura atacar meu estômago, ele já coloca algo para amenizar esse efeito. Em vez de um monte de comprimidos, tomo um só".
Essa é uma das características mais valorizadas da farmácia de manipulação: a possibilidade de individualizar as fórmulas, segundo as características do paciente.
Antes da chegada dos laboratórios estrangeiros ao país, o que aconteceu principalmente nos anos 50, o Brasil dependia das fórmulas magistrais, aviadas por farmacêuticos de aventais brancos, espécie de alquimistas em suas boticas misteriosas.
Mas a industrialização acelerada do setor farmacêutico teve como contrapartida a quase extinção de uma categoria profissional inteira: a dos farmacêuticos. Importados os ingredientes, nas plantas fabris nacionais, eles eram misturados e embalados. Para quê farmacêutico?
Em meados dos anos 60, chegou-se a discutir a suspensão de cursos de graduação em farmácia. Motivo: falta de alunos interessados em seguir a carreira.
Nos anos de 90, no rastro da legislação sobre os genéricos, os consumidores se acostumaram a comprar remédios pelo nome do princípio ativo.
Segundo Roberto Luiz D'Ávila, corregedor do Conselho Federal de Medicina, "isso pode ter colaborado para a proliferação das farmácias magistrais".
Tempo das vacas magras ultrapassado, o curso de farmácia e bioquímica já é um dos mais concorridos no vestibular da Universidade de São Paulo, com 17 candidatos por vaga. Outro indicador: na quinta-feira da semana passada, aberto oficialmente o 2º Congresso da Associação Nacional das Farmácias Magistrais, o que se viu foi um segmento responsável por 60 mil empregos diretos e 235 mil indiretos.


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