São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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BOTICA MODERNA

Setores farmacêutico, médico e governamental querem mais controle na manipulação e fiscalização

Regulamentação de farmácias magistrais é falha

DA REPORTAGEM LOCAL

"Toda vez que uma pessoa abre uma caixa de comprimido, pega uma cápsula e engole-a, algum laboratório está recebendo um selo de confiança virtual, conferido pelo consumidor. Ninguém sabe ao certo o que está ingerindo, mas confia que, na pequena drágea, está o alívio para algum problema. Essa é a importância de haver legislação, fiscalização e controles eficientes para garantir a qualidade dos remédios", explica a ex-diretora do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, a farmacêutica Marisa Lima Carvalho, 45.
É esse pacto de confiança que ainda está sendo elaborado no caso das farmácias de manipulação. A primeira regulamentação específica para elas foi elaborada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) apenas em 2000, quando a Resolução da Diretoria Colegiada número 33 (ou RDC 33) estabeleceu as diretrizes básicas de atuação do setor.
Quatro anos depois, especialistas dos setores farmacêutico, médico e governamental convergem para um ponto: a RDC 33 precisa de aprimoramentos.
"É preferível regulamentar agora do que, daqui a algum tempo, uma tragédia obrigar ao fechamento de todo o setor", diz o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, José Correira da Silva, 48, que lidera os fabricantes brasileiros de matérias-primas farmacêuticas.
Há mais de três meses um grupo que reúne representações das farmácias de manipulação, dos médicos, da Anvisa e de órgãos de defesa do consumidor discute alterações em pontos nebulosos da regulamentação atual.
Um dos pontos questionados da RDC 33 é aquele que permite a manipulação de medicamentos já existentes nas prateleiras das drogarias. "Isso é uma incorreção no cumprimento da resolução. A farmácia não foi feita para competir com a indústria, mas para preencher os nichos que não são atendidos por ela", explica Vitor Hugo Travassos, diretor da Anvisa e ex-diretor da divisão farmacêutica do Hospital das Clínicas.
Por nichos entenda-se aqueles casos pontuais de pacientes que, por uma razão ou por outra, necessitam de medicamentos já registrados e produzidos pela indústria, mas em doses não encontradas no mercado. Aí, não há outra saída: é preciso manipular doses fora de padrão industrial.
As farmácias magistrais, contudo, vêm ganhando mercado principalmente por oferecer os mesmos remédios, mas a preços muito mais vantajosos.
Uma medicação feita sob encomenda, que mobiliza um farmacêutico especificamente para sua formulação, seria, em tese, mais cara do que outra, produzida em escala industrial. O que ocorre é justamente o contrário: tudo no processo industrial é mais caro -da série de controles realizados em cada lote aos impostos que incidem sobre o setor industrial.
Basicamente, são três os controles de processos necessários à fabricação de um medicamento:
1. controle de qualidade da matérias-primas (é pura? contém agentes contaminantes?)
2. controle do produto manipulado, quanto a pureza e concentrações dos princípios ativos
3. controle de microbiologia (checa-se a contaminação por agentes patogênicos)
"Na indústria, ainda há uma série de testes mais aprofundados que culminam com uma análise que serve para avaliar se a substância será absorvida apropriadamente pelo organismo humano. Nada disso é feito nas farmácias de manipulação. E não há como fazer isso porque o tempo da manipulação é outro", explica o farmacêutico Silas Gouveia, ex-funcionário da Anvisa.
"Não dá para comparar o controle de qualidade que incide sobre o produto industrializado com o controle dos remédios manipulados. Na indústria, esses controles são bem mais completos e intensos. Não há como as farmácias fazerem todos os controles fórmula por fórmula. Isso é inviável", diz Gouveia.
Nas farmácias magistrais, os controles sobre matérias-primas ainda estão em fase de implantação. Um importador de insumos e um farmacêutico que já trabalhou em órgãos da vigilância sanitária contaram à Folha o mesmo episódio ilustrativo em que, felizmente, os riscos foram abortados:
"No ano passado, uma inundação nos depósitos de um importador de matérias-primas levou à contaminação e à perda total de um estoque de insumos. O seguro cobriu as perdas, e o material deveria ter sido enviado para incineração. Não foi. Tempos depois, um leilão anunciado num jornal propagandeava a venda do mesmo lote. Foi preciso que autoridades da vigilância sanitária comparecessem ao leilão para impedi-lo de se realizar", disse o farmacêutico apoiado pelo importador.
A questão das matérias-primas fica ainda mais complexa quando se sabe que hoje há uma diversidade de fornecedores de princípios ativos. Até bem pouco tempo atrás, o laboratório farmacêutico que desenvolvia uma patente de remédio era praticamente o único fornecedor dessa molécula.
Com a crescimento mundial da indústria de genéricos, abriu-se para outros interessados a fabricação de moléculas cujas patentes já tivessem caído em domínio público. O resultado é que hoje pode-se comprar princípios ativos em zonas francas do mundo todo, fabricados na Indonésia, China, Índia e Coréia do Sul, e 95% das matérias-primas utilizadas no Brasil são importadas.
É essa diversificação de fornecedores (existem os bons, mas também existem os maus) que torna imperioso o rigor no controle e análise da substância utilizada.
No Brasil, apenas um importador e distribuidor, a SP Farma, de São Paulo, tem o certificado da Anvisa de "Boas Práticas de Distribuição e Fracionamento". "Nós enviamos nossos técnicos para fábricas na China ou Índia, a fim de que eles fiscalizem in loco as condições em que as matérias-primas são produzidas", diz Germano Hansen Jr., da SP Farma, que submete os insumos que comercializa a testes de teor e pureza.
O próprio Hansen admite que "cerca de 10% da matéria-prima importada é rejeitada por apresentar teores de umidade e de pureza diferentes do especificado". Mata? "Não quer dizer que mate. No máximo, é inócuo", diz.
A farmacêutica Marisa é enfática: "Não há remédio inócuo. Um remédio inócuo é aquele que deixa de dar alívio a um paciente que precisa dele. Isso para dizer o mínimo. No caso de antibióticos, tomar um remédio que não combata a infecção pode significar o agravamento do quadro com conseqüências imprevisíveis."
Preocupada com isso, a associação das farmácias magistrais iniciou há um mês o seu próprio programa de qualificação dos fornecedores de matérias-primas. Apenas outra empresa, também de São Paulo, a Mase, já possui o certificado da Anfarmag. São cerca de 60 fornecedores, 17 dos quais estão inscritos no programa de qualificação da entidade.
Outro problema sério nas manipulações surge quando, na formulação de um medicamento, entram as chamadas "substâncias de baixo índice terapêutico", aquelas em que a dose letal é muito próxima da dose terapêutica.
"Produtos com a formulação de ingredientes de baixo índice terapêutico requerem fabricação em condições bem particulares, difíceis de atingir quando o procedimento é artesanal, como na manipulação", diz a farmacêutica Maria do Carmo Miranda, do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, o INCQS da Fundação Oswaldo Cruz.
Análises do mesmo INCQS, feitas a partir de denúncias de danos à saúde entre 2000 e 2003, comprovam que as conseqüências podem ser graves. No Hospital Joana de Gusmão, em Florianópolis, uma menina de dez anos morreu com suspeita de intoxicação. Ao se fazer a análise dos comprimidos de clonidina que ela havia tomado e que tinham sido manipulados, encontrou-se um teor 321,84 vezes maior do que o prescrito na receita.
A dificuldade de as farmácias manipularem as substâncias de baixo índice terapêutico decorre da própria forma de fabrico de um remédio. Na maior parte dos casos, o princípio ativo de um medicamento é encontrado em doses da ordem de miligramas, misturado a um excipiente inócuo que compõe a maior parte da massa de um comprimido.
No caso de "substâncias de baixo índice terapêutico" muito potentes, a dose do princípio ativo é medida em microgramas, ou milionésimo de grama. Acontece que a maioria das farmácias de manipulação não têm equipamentos de pesagem necessários para a obtenção de tal precisão.
A fim de evitar a ocorrência de mais casos como os analisados pelo INCQS, a diretoria da Anfarmag desenvolveu técnicas capazes de contornar o problema da micropesagem. Coube à Faculdade de Farmácia e Bioquímica da USP (Universidade de São Paulo) criar o método que está sendo ensinado a todos os farmacêuticos.
A preocupação de vários técnicos ouvidos pela Folha, no entanto, persiste. "Basta um grão a mais do princípio ativo para ocasionar uma superdosagem", diz o farmacêutico Silas Gouveia.
Outras substâncias de baixo índice terapêutico, como a levotiroxina (hormônio da tireóide) e a digoxina (usada no controle de taquicardias e no tratamento da insuficiência cardíaca), também fizeram vítimas contabilizadas na análise do INCQS.
O caso da clonidina, entretanto, ganhou uma dramaticidade extra pela quantidade de vítimas (14, com dois óbitos) e pelo fato de que todas elas estarem tomando o medicamento "para promover o crescimento", uma prescrição não autorizada pela Anvisa, que apenas autoriza o uso da substância como coadjuvante em tratamentos de hipertensão arterial.
A prescrição de remédios que não têm usos autorizados pela Vigilância Sanitária é mais um mal que afeta o setor de farmácias magistrais. Além da clonidina como estimulante de crescimento, o professor Elisaldo Carlini, médico psicofarmacologista da Universidade Federal de São Paulo, aponta o absurdo uso de drogas que induzem a dependência, sob a forma de receitas manipuladas.
O Brasil é o campeão mundial em consumo de anfetaminas, substâncias condenadas pelas boas práticas de medicina, por causar séria dependência física e psíquica e que só deveriam ser consumidas em casos raríssimos de narcolepsia (doença caracterizada por períodos de sono breves, repetidos e incontroláveis).
O recorde mundial de consumo de anfetaminas, o Brasil consegue principalmente graças à manipulação de fórmulas emagrecedoras. Quem não conhece aquela amiga que emagreceu "n" quilos graças a uma receita mágica obtida com um médico e aviada numa farmácia magistral? O professor Carlini esclarece o milagre:
"Nessas cápsulas, o médico prescreve, muitas vezes em código, a fórmula do coquetel emagrecedor. Entra a anfetamina, que induz um estado de anorexia, um calmante de tipo benzodiazepínico (que também causa dependência e serve para rebater os efeitos da anfetamina), um diurético, um laxante e hormônio da tireóide, a levotiroxina. A pessoa murcha."
"E o pior é que o paciente ainda pensa que o produto é natural, que a receita foi feita especialmente para ele, só porque foi fabricado numa farmácia de manipulação. Natural é só o laxante", explica Carlini. "Isso deveria ser proibido em nome da saúde pública."
A gerente de marketing Simone Chadalakian, 34, precisou de uma farmácia de manipulação quando seu médico receitou um medicamento que existia no mercado, mas numa dosagem diferente. Era o caso de manipular uma fórmula individualizada.
Simone nem percebeu que foi alvo de um esquema vedado pelo Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina: ainda no consultório, recebeu das mãos de seu médico a receita e o cartão de uma farmácia. "Para mim foi melhor ter uma indicação. Eu não saberia para onde ir."
De acordo com os artigos 98 e 99 do código, é proibida a interação entre médico e farmácias. "Se há médicos direcionando pacientes para tal farmácia de manipulação, ganhando algum benefício com isso, está configurada uma infração médica passível de punição", explica Roberto Luiz D'Ávila, corregedor do Conselho Federal de Medicina.
Práticas vedadas pelo Código de Ética Médica, como a interação entre médicos e indústria, já acontecem na relação entre médicos e farmácias magistrais. "As farmácias adotaram uma prática nefasta dos laboratórios, oferecendo propina pela indicação do médico", conta Gouveia.
"O médico assediado por agentes de farmácias magistrais deve denunciar a farmácia ao Conselho Federal de Farmácia", afirma D'Ávila. "Essa é uma prática odiosa e o aceite do médico é uma infração punida severamente, porque coloca em primeiro lugar o interesse financeiro e não a saúde do paciente." (LAURA CAPRIGLIONE E FERNANDA MENA)


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