|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GILBERTO DIMENSTEIN
Essa crise é uma asneira
A proporção que assumiu
o debate sobre o fichamento
de turistas dos EUA se explica pela tradicional falta de assunto do
mês de janeiro, quando as notícias escasseiam, e pela baixa auto-estima do brasileiro. Em essência, o episódio é uma asneira.
Transformou-se uma questão
burocrática numa ofensa ao orgulho nacional e em ensaio de crise bilateral, o que por si só revela
como nos sentimos inferiores aos
Estados Unidos. Um sentimento
que vem, em parte, do servilismo
cultural brasileiro.
Quando o desrespeitoso comandante da American Airlines Dale
Robbin Hersh fez o gesto obsceno
ao ser fotografado na alfândega,
ganhou seus 15 minutos de fama e
ofereceu a imagem que faltava
para que toda uma nação se sentisse humilhada por uma potência estrangeira. Pela repercussão
da ofensa, o insignificante sujeito
passou a ser representante não de
uma empresa de aviação, mas de
todo um país.
A única coisa séria dessa "crise"
é o fato de que prospera, no país,
um antiamericanismo, reflexo,
entre outros motivos, da arrogância imperial da política externa
dos Estados Unidos.
O problema da reciprocidade
brasileira é que, de verdade, não
era recíproca.
Os americanos não inventaram
a identificação eletrônica para
humilhar ninguém, mas para se
prevenirem de eventuais ataques
terroristas. Se estavam exagerando ou não, é outro problema. Nesse período do ano, eu estava em
Nova York, suposto alvo de atentados. Sinceramente, sentia-me
protegido por saber que as autoridades faziam tudo o que podiam
para garantir a segurança de
quem estava lá. Não é preciso
acompanhar de perto os conflitos
do Oriente Médio para saber que
a existência de homens-bomba é
uma rotina.
O Brasil não estava ameaçado
de nenhum ataque. De nada servirão as digitais e as fotos dos turistas, mas, até aí, tudo bem. É
apenas um problema de desperdício de recursos públicos.
Problema mesmo foi que, aqui,
o fichamento virou humilhação
pela falta de recursos tecnológicos
nos aeroportos do país. Turistas
se viram obrigados a ficar desnecessariamente horas e mais horas
nas filas para mostrar nossa altivez patriótica.
Não se puniu o governo dos Estados Unidos, mas os cidadãos
que vieram ao país gastar seus
dólares e gerar empregos. Enquanto isso, as massas aplaudiam a coragem do juiz que assegurou a soberania brasileira. O
presidente Lula mostrou, de peito
estufado, independência nacional
e ratificou o fichamento. Mais
aplausos.
Jornalistas que tentaram mostrar o ridículo dessa atitude logo
foram classificados de servis ao
império, desprovidos de dignidade patriótica.
A histeria faz confundir uma
atitude contra um determinado
governo de cujas posições discordamos -e esse governo Bush merece mesmo muitas críticas-
com a população do país. Não
gostaria de ser criticado por ser
brasileiro porque, por exemplo,
fomos presididos por Fernando
Collor de Mello ou governados
pelos militares.
É comum pessoas não gostarem
do governo de Israel (e eu também não gosto) e atacarem generalizadamente os israelenses e
mesmo os judeus. Não gostar de
todo um povo por causa de seus
governantes é indigência, manipulada por demagogos. Há importantes segmentos da opinião
pública americana que atacam
duramente a histeria bélica do
governo Bush, inclusive a política
de trator com a América Latina.
A alma nacional foi, então, lavada porque um bando de turistas ficou esperando na fila por até
sete horas? Como escrevi no início
deste artigo, se houvesse mais assuntos em janeiro, quando ainda
estamos todos embalados pela
amenidade das festas de fim de
ano, e não fosse a baixa auto-estima do brasileiro, o caso até poderia provocar protestos, mas jamais ganhar status de crise.
O orgulho nacional deveria estar (e está acima) muito acima
disso.
PS - Para fazer justiça e contraponto ao antiamericanismo, dou
um depoimento baseado no tempo em que vivi nos Estados Unidos: morando lá por três anos, vi
muitas coisas detestáveis, mas
testemunhei uma solidariedade
comunitária que não encontrei
em nenhum outro país -e quem
disser que não existe estará mentindo ou não conhece o país. Sempre me impressionou muito a
quantidade de empresários que
doam fortunas para a educação,
a saúde e a cultura. Quem não
tem dinheiro doa tempo para ajudar creches, escolas, asilos, parques, museus. Também me impressionava especialmente a
abertura com que as universidades, mesmo as mais renomadas,
recebiam estudantes e pesquisadores estrangeiros, generosamente compartilhando conhecimento
e valorizando talentos. Parte da
elite intelectual brasileira foi e é
beneficiada por essa abertura
acadêmica.
E-mail - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: Vestibular: Exame da UFSCar começa hoje com menos inscritos Próximo Texto: Panorâmica - Estradas: Acidente na Mogi-Bertioga mata dois Índice
|