São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pilotos tiveram dificuldades com novo avião

Transcrição das conversas mostra que eles enfrentaram problemas com equipamento que gerencia dados do vôo e com o rádio

Em dezembro, à Folha, Lepore afirmou que Legacy lhe era "muito familiar" e Paladino disse que já havia pilotado "cópia exata" do jato

DA COLUNISTA DA FOLHA

A transcrição das conversas da cabine de comando do jato Legacy, gravadas pela caixa-preta, mostra que os pilotos norte-americanos Joe Lepore e Jan Paladino tiveram dificuldades com o novo aparelho, com o rádio, com o mapa aeronáutico brasileiro e com o inglês falado pelos controladores de São José dos Campos (SP).
O piloto rotulado como Hot 1 na transcrição admite que estava "ainda trabalhando os problemas de mexer nessa coisa", referindo-se ao FMS (Flight Management System), que gerencia todos os dados do vôo, inclusive rota e altitude.
Mais adiante, depois de dizer que precisava "ler o livro", reclamou: "Tudo está uma bagunça porque (...) nós precisamos, eu acho, limpar esse avião e o configurar".
Em entrevista à Folha, concedida em Nova York e publicada em 17 de dezembro, Lepore disse que é piloto há 20 anos, treinou 20 horas no simulador e, além disso, voa há bastante tempo em aeronaves similares. "O equipamento me era muito familiar", declarou. Na mesma entrevista, Paladino disse que era piloto há 16 anos e tinha voado como comandante no Embraer 145, que classificou como "cópia exata do Legacy".
Nenhum dos dois, na entrevista, criticou o controle aéreo brasileiro diretamente. Mas, entre eles, durante o vôo que acabou em tragédia, não foi bem assim.
Os dois reclamam do inglês do controlador de vôo de São José dos Campos, onde o Legacy decolou, e citam especificamente as dificuldades para estabelecer a altitude, uma questão-chave do choque com o Boeing da Gol.
Ambos voavam a 37 mil pés, em sentido contrário. E, no sentido Brasília-Manaus, que era o do Legacy, as altitudes ímpares são "contramão".
"Nós estávamos tentando pegar um altitude antes de partirmos e houve isso", diz Hot 1. O outro, Hot 2, também reclama: "Ah. Ele [o controlador] apenas ficou dizendo voe partida Oren [um perfil de subida]". Em seguida, o piloto diz que perguntou duas vezes pela altitude. Na verdade, foram três. "Odeio ter a Força Aérea Brasileira no nosso rabo", acrescenta, enfim.

Sistema anticolisão
Outra questão-chave é que o transponder, aparelho que aciona o TCAS (o sistema anticolisão), estava inoperante. As 112 páginas de conversas dos pilotos não esclarecem o motivo em nenhum momento. Até o choque, não há registro nem de que os pilotos tenham desligado o aparelho nem de que tenham percebido que ele não estava funcionando.
Só depois, um piloto pergunta para o outro: "Cara, você está com o TCAS ligado?" O outro responde: "É. O TCAS está desligado".
A fabricante do transponder, a Honneywell, norte-americana, convocou aparelhos semelhantes para um "recall", pois eles estariam entrando em "stand-by" inadequadamente. O aparelho do Legacy, porém, não está na lista de "recall".
Conforme a Folha apurou, os investigadores aeronáuticos trabalham com a hipótese de um dos dois, Lepore ou Paladino, estar com um laptop aberto no colo, com a tampa escondendo a parte do painel onde se encaixa o transponder.
Nas fitas, não há referência direta a laptop, mas há a DVD. E, mais uma vez, os dois pilotos se atrapalham na manipulação desse aparelho.
Eles também manifestam dúvidas sobre a localização da aeronave e, em determinado momento, Hot 2 diz ao companheiro: "Eu só quero ter certeza de que estamos indo na direção certa". Como se, justamente, não tivesse a certeza.
Em outro momento, eles parecem consultar os mapas, mas não conseguem identificar um rio, que julgam ser "San Felix".

Descontração
As conversas registram ainda momentos de descontração, quando os pilotos se animam com a hipótese de voltar ao Brasil, via Rio, para pegar um novo avião da Embraer -que produziu o Legacy. A viagem estava prevista para dezembro de 2006, e eles dizem, aliviados, que têm visto de cinco anos para entrar no país.
Há, ainda, vários palavrões e algumas referências pouco elogiosas aos controladores brasileiros, chamados, por exemplo, de "fudidos". Para os pilotos, nas palavras de um deles, eles "foram esquecidos" pelo controle aéreo brasileiro.
As conversas foram transcritas pelo NTSB (National Transportation Safety Board), de Washington (EUA), e constam das investigações, ainda em andamento, da Polícia Federal e das autoridades aeronáuticas. Originalmente em inglês, foram traduzidas para o português e, em alguns trechos, estão truncadas ou incompletas.
Quem assina o trabalho é Albert G. Reitan, especialista em segurança no transporte. Em inglês, caixa-preta é CVR (Cockpit Voice Recorder).
Apesar de não haver indicação de quem é quem na transcrição, é razoável supor que Hot 1 é Lepore, que é mais contido, e que Hot 2 é Paladino, sempre mais falante e mais veemente.
Há, ainda, referência a Hot 3, Hot 4 e CAM, sem ser possível identificar, até o momento, a que se referem essas siglas. Havia sete pessoas no vôo: além de Lepore e Paladino, representantes da ExcelAire, dona do avião, da Embraer, que o produziu, e dois jornalistas. (ELIANE CANTANHÊDE)


Texto Anterior: Projetos de lei estavam parados havia 4 anos
Próximo Texto: Certeza do choque dos aviões só veio após pelo menos 50 minutos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.