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PASQUALE CIPRO NETO
"Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!"
É provável que você já tenha ouvido alguém dizer que
a vírgula e o "e" são inimigos
mortais. Não são. Em muitos casos, a vírgula antes do "e" é fundamental para a clareza do texto.
Pois bem, para começarmos a
nossa conversa, vejamos este título, publicado pela Folha em fevereiro: "Corinthians perde atletas,
jogo e racha fora de campo". Não
houve engano, não, caro leitor,
nem erro de digitação (por sinal,
sou péssimo nisso). O título é exatamente o que você acaba de ler.
Um dos problemas da frase está
no mau uso da combinação "vírgula + e". Explico: a vírgula depois de "atletas" cria a expectativa da enumeração de termos de
mesma função ("Leia Bandeira,
Drummond e Jorge de Lima";
"Ouça Chico César, Celso Viáfora
e Lenine"). No título do jornal, essa expectativa de enumeração de
substantivos é quebrada pela súbita presença de um verbo ("racha"), precedido da conjunção
"e", que encerra a "enumeração".
Moral da história: no título,
misturam-se alhos com bugalhos,
já que se enumeram dois substantivos e um verbo. É exemplo clássico de falta de paralelismo.
A mistura de alhos com bugalhos é particularmente agravada
pelo fato de que, no "futebolês",
"racha" pode funcionar como
substantivo (o racha é uma pelada, um jogo sem compromisso,
um jogo-treino mais leve etc.).
Posto isso, leia o título novamente e diga-me se, num primeiro momento, é difícil resistir à
tentação de achar que o Corinthians perdeu as três coisas (atletas, jogo e racha). É difícil, não?
A esta altura, talvez seja bom
dizer o que poderia tornar mais
inteligível a frase. Que tal um "e"
antes de "jogo" e, talvez, uma vírgula antes do "e" que já estava no
título? Vejamos como fica: "Corinthians perde atletas e jogo (,) e
racha fora de campo". Já sei, não
é a oitava maravilha, mas a mensagem parece ficar mais clara,
não? Bem, o fato é que esse duplo
emprego do "e" (um para encerrar a enumeração de substantivos
e outro para somar orações) nem
sempre gera efeito agradável.
A repetição do "e" é comum na
linguagem literária, como se vê
nestes versos de "A um Poeta", de
Olavo Bilac: "Longe do estéril turbilhão da rua, / Beneditino, escreve! No aconchego / Do claustro,
no silêncio e no sossego, / Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e
sua!". Um dos efeitos desse processo (a que se chama "polissíndeto") é o da sensação de que a oração iniciada pelo "e" encerrará o
período, o que não ocorre. Com
isso, prolonga-se a expectativa do
fim e, conseqüentemente, obtém-se ênfase para cada uma das orações introduzidas pelo "e".
Note que a seqüência de Bilac é
simétrica: o poeta usa o "e" para
somar orações (formadas -com
exceção da primeira- apenas
pelo "e" e por uma forma verbal).
Note também, caro leitor, que no
texto de Bilac há vírgula antes de
todas as ocorrências do "e", o que
é comum nesses casos.
Quer outro exemplo? Veja este,
de Vinicius de Moraes ("Soneto
de Fidelidade"): "De tudo, ao
meu amor serei atento / Antes, e
com tal zelo, e sempre, e tanto /
Que mesmo em face do maior..."
(não leia verso por verso, por favor; leia de acordo com a estrutura sintática: "De tudo, ao meu
amor serei atento antes, e com tal
zelo, e sempre, e tanto que...").
Os casos em que se emprega a
vírgula antes do "e" não se resumem aos vistos neste texto. Os demais ficam para outro dia. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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