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DANUZA LEÃO
Quando acontecer
Eu iria dormir quando anoitecesse, acordaria quando o dia começasse a clarear, e não teria relógio
EU GOSTO DE muitas coisas: de
cinema, de televisão, de estar
com gente, de ficar sozinha
(disso gosto muito), de dar um mergulho no mar, de comer, de várias
coisas, enfim. Mas sei que um dia
vou enjoar de tudo isso. Como será
minha vida quando isso acontecer?
Faço muitas fantasias a respeito.
Uma delas é ir morar numa praia
quase deserta, tipo uma aldeia de
pescadores, onde não houvesse telefone, talvez nem luz elétrica. Eu iria
dormir quando anoitecesse, acordaria quando o dia começasse a clarear, e não teria relógio, claro. Aliás,
nesse quase fim de mundo ninguém
teria relógio; e para quê?
Os dias seriam passados sem fazer
rigorosamente nada, a não ser dar
longas caminhadas na areia, com os
pés na beira do mar; à tarde iria ver
as canoas dos pescadores chegarem,
e conversaríamos sobre como foi a
pesca, se rendeu ou não.
Teria apenas dois sapatos: uma
sandália para quando não quisesse
sujar os pés na areia e um outro para
os dias de festa -pois nesses lugares
às vezes elas acontecem. Dois biquínis, dois shorts, quatro camisetas,
um vestido para os dias das festas e
um suéter para quando batesse um
vento frio. E não me preocuparia
nem um pouco com o que iria comer, já que seria peixe todos os dias.
Às vezes uns camarões ou uns siris, para levar horas quebrando numa tabuinha, e nunca mais pensaria
na palavra dieta.
Não teria rádio, nem um daqueles
pequenos de pilha, para não saber o
que se passa no mundo, e não teria
em casa um só livro; livros podem
ser perigosos, fazem a gente pensar,
e quando eu enjoar de tudo, a última
coisa que vou querer é pensar.
Teria dois gatos para poder acarinhar e não dormir sozinha -é bom,
dormir com dois gatos na cama, e se
você nunca teve isso, não sabe o que
está perdendo. E estou pensando seriamente em ter também um papagaio, mas ainda não resolvi.
Olha que coisa maravilhosa: nunca mais saber qual o restaurante da
moda, se os sapatos da moda são de
salto alto ou baixo, como vai o ibope
das novelas e sobretudo -sobretudo- não saber com quantos ministérios o PMDB ficou e se a Marta
aceitou o do Turismo.
Não ter um só potinho de maquiagem -conte quantos você tem e que
não usa- e só um sabonete para o
banho e para lavar os cabelos. Afinal,
houve um tempo em que não existia
shampoo, creme rinse, hidratante
para o corpo e os cabelos nem filtro
solar, e ninguém morria por causa
disso.
Não saber quem ganhou o Oscar, a
quanto está o dólar, quais são os homens mais ricos do mundo, nem o
que está na moda. Sem saber de nada disso eu teria todo o tempo do
mundo para que minha cabeça voasse e eu me imaginasse às vezes um
peixe, às vezes um pássaro, e poderia
passar o dia inteiro escolhendo que
peixe ou que pássaro gostaria de ser.
Como essa escolha seria difícil,
não conseguiria dormir com
essa grande dúvida me atormentando, iria lá fora, arrancaria uns galhinhos do pé de cidreira para fazer um
chá e acalmar minha insônia, e dormiria de olhos abertos, olhando as
estrelas.
Ainda não enjoei de tudo; sei que
um dia vou enjoar, mas não sei se terei coragem para uma virada dessas,
o que será uma pena. Porque passar
o resto da vida vivendo assim -ou
pelo menos um tempo- deve ser a
felicidade total.
Para os poucos privilegiados que
conseguem.
danuza.leao@uol.com.br
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