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RUBEM ALVES
O silêncio
Tagarelas alegres são emissários do demônio -com suas palavras tolas eles nos tiram das águas profundas
O VENTO FRIO, AOS golpes,
anunciava que o inverno estava se aproximando. Nuvens cinzentas cobriam os Alpes, como navios que navegavam velozes,
levadas pelo vento. Era um velho
mosteiro de freiras que praticavam
o silêncio, costume abençoado que
libertava as pessoas da obrigação de
conversar com os vizinhos às mesas
de refeições. Não ser obrigado a conversar é uma felicidade.
É raro que as pessoas entendam
isso. Eu iria dar uma fala, faltava ainda meia hora e procurei um lugar escondido onde pudesse ficar quieto
com os meus pensamentos. Achei-o
sob uma escada, quase invisível e ali
me escondi. Foi então que uma pessoa delicada me viu ali sozinho e
bondosamente pensou: "O professor Rubem Alves está abandonado..." Dois minutos depois meu refúgio estava cheio de pessoas falantes
que destruíram a minha solidão... Os
tagarelas alegres são emissários do
demônio porque com suas palavras
tolas eles nos tiram das águas profundas em que nos encontrávamos.
Deus é o Grande Mar. A alma é um
peixe. Os poetas sabem disso.
T.S. Eliot escreveu: "Nosso olhar é
submarino. Olhamos para cima e vemos a luz que se fratura através das
águas inquietas..."
Hóspede naquele mosteiro, eu deveria obedecer aos horários e participar dos eventos. Um deles me horrorizou: participar das celebrações
litúrgicas às 6h, às 12h e às 18h.
O santuário era um velho celeiro
de madeira octogonal, muito grande
e escuro, sem janelas. Os arquitetos,
para pôr luz nas sombras, abriram
buracos nas paredes, cobrindo-os
com vidros coloridos. A luz do sol,
entrando pelos orifícios e atravessando os vidros coloridos, faziam
desenhos no espaço vazio, desenhos
que se deslocavam à medida em que
o sol caminhava pelo céu.
Os bancos, poucos, seguiam três
lados do octógono; a mesa, iluminada com velas, tinha no seu centro
um ícone de Jesus ao estilo bizantino. Cheguei no horário. Poucas pessoas. Os mosteiros não são lugares
que atraiam turistas.
Fiquei à espera do início da liturgia, que deveria iniciar-se suiçamente ao repicar dos sinos às 6h da manhã. Os sinos repicaram mas nada
aconteceu, nenhuma reza, nenhum
hino, nenhuma leitura bíblica.
Pus-me a examinar o espaço e as
luzes que se entrecruzavam. O exercício de simplesmente ver tem o
efeito de fazer parar o pensamento.
Alberto Caeiro já dizia que "pensar é
estar doente dos olhos..."
Os pensamentos, produtos internos da cabeça, são perturbações que
distorcem a pureza da visão.
Aí, ao misticismo do ver seguiu-se
o misticismo do ouvir. O vento descia furioso das montanhas, em golpes, lufadas que torciam a estrutura
de madeira, provocando aqueles
ruídos típicos de navios à vela batidos pelo vento. Ao lado do santuário
havia uma plantação de macieiras
nuas, o vento havia arrancado suas
folhas todas, somente seus galhos
pelados ficaram. Quando o vento sacudia a galharia era como se houvesse um mar enraivecido quebrando
ondas. Aí os sons e as cores começaram a invocar poemas ancestrais.
"E a terra era um abismo sem forma e o vento de Deus soprava violentamente sobre a superfície das
águas... E disse Deus: "Haja luz..." E
aí meus pensamentos foram possuídos pela poesia.
Mas e a liturgia? Já eram 6h20.
Percebi então que a liturgia havia
começado às 6h, quando os sinos tocaram... Só silêncio...
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