São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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"Desigualdade, e não a pobreza, aciona a violência"

PEDRO SOARES
DA SUCURSAL DO RIO

Não é a pobreza, mas sim a desigualdade -em todas as suas formas- que aciona o estopim da violência urbana. A opinião é da economista da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Sônia Rocha, especializada em questões sociais.
O que gera violência, diz, é a "desestruturação urbana, desestruturação das sociedades, das comunidades em relação ao que elas esperam, ao que elas têm e ao que elas vêem". Para Rocha, não existe uma "vinculação" entre pobreza e violência.
 

Folha - Qual a relação entre violência, pobreza e miséria urbana?
Sônia Rocha -
Não existe uma relação direta. As áreas mais pobres do país são provavelmente áreas no Nordeste, onde existem bolsões de pobreza crítica. Lá, não existe violência, ao menos essa da qual a gente está falando. A violência é a própria pobreza, a própria miséria, as condições de vida das pessoas. Mas elas não se atacam por causa disso. O que existe muito mais é uma relação entre desigualdade e violência, desestruturação urbana, desestruturação das sociedades, das comunidades em relação ao que elas esperam, ao que têm e ao que vêem. Não é pobreza [a causa da violência]. É a ruptura do tecido social, a falta de estrutura das famílias, a desigualdade e os conflitos.

Folha - É o contraste urbano entre rico e pobre que ativa a violência?
Rocha -
Não é só o contraste entre riqueza e pobreza. O poder, a renda alta, a possibilidade de consumo são imolados para a população de baixa renda. Isso gera insatisfação. As condições de desigualdade, do mercado de trabalho e de acesso à renda tornam isso [o consumo] algo totalmente fora das possibilidades de grande parte da população. Isso gera uma insatisfação horrorosa, que gera, claro, violência também.

Folha - Esse é o principal ingrediente para a explosão da violência nas grandes cidades?
Rocha -
Não. O tráfico de drogas é um complicador nessa história. Isso porque o tráfico entra e não tem fronteiras. Ele oferece uma possibilidade de ganhos de curtíssimo prazo enormes. E é uma atração enorme para os jovens, principalmente os que não têm acesso à educação, que não têm possibilidades de inserção na sociedade, que não têm futuro.

Folha - Faltam políticas públicas para jovens?
Rocha -
Temos hoje nas áreas urbanas uma população jovem muito pouco educada. É uma clientela que deveria ser privilegiada pelas políticas sociais, nessa faixa de 15 a 25 anos. Eles já não são alvo da maioria daqueles programas que montamos nos últimos anos, do tipo bolsa-escola, bolsa-alimentação, que têm toda a razão de ser, porque essa também é uma clientela importante. Já não estão em idade escolar, mas têm um atraso escolar enorme. E o mercado de trabalho é cada vez mais complexo. Além de não terem a educação formal, não conhecem os códigos. São tão excluídos que não sabem o modo de se portar, de falar, tudo o que é necessário para um emprego.

Folha - O que ocorre na Rocinha é resultado da falta dessas políticas?
Rocha -
O que está acontecendo na Rocinha hoje é essencialmente tráfico. A Rocinha certamente não é uma das áreas mais pobres do Rio. Lá, não se encontra a situação de pobreza que se vê em algumas áreas de periferia. Eu não diria que a Rocinha ou qualquer outra favela da zona sul do Rio é uma área crítica de pobreza.
Essas comunidades têm acesso a serviços públicos muito melhores. Geralmente, têm água, luz e escola. Têm também centros de saúde na proximidade, transporte regular.Tudo é muito melhor do que em áreas que, às vezes, não são nem faveladas.

Folha - Qual a principal causa do conflito na Rocinha?
Rocha -
Lá, tem uma população refém do tráfico, o que em si já é um problema. Nesse momento, há uma guerra de gangues. É o que tem acontecido volta e meia no complexo do Alemão [também no Rio]. Um grupo invade a área de controle do mercado de drogas do outro e a população fica refém, no meio do fogo cruzado. Isso se soma a um conjunto de problemas que são crônicos, mas que não são críticos. Volta e meia há uma crise devido à questão específica de disputa de área. Não é pobreza que gera violência, mas a desigualdade de renda, de poder, de patrimônio, de acesso às coisas que a renda permite.

Folha - Essa desigualdade é diferente em outras cidades, como São Paulo?
Rocha -
São Paulo tem uma disposição urbana diferente da do Rio. Existe violência também. Existem áreas com problemas críticos, áreas fechadas à sociedade civil, mas elas ficam na periferia. No Rio, o modelo é diferente. Essas áreas estão dentro da cidade, perto do mercado consumidor [de drogas]. As favelas evoluíram para abrigar o tráfico.

Folha - O inchaço das cidades provocado pela migração tem relação com a violência?
Sônia Rocha -
Não. Mas, sem dúvida, a vida é melhor nas cidades. Por isso, eles continuam vindo. Mesmo São Paulo tendo uma taxa de desemprego elevada, a migração do Nordeste para lá se mantém elevada. Essa é uma das razões para uma incidência de pobreza tão grande em São Paulo. Mas migram por qual motivo? Eles percebem que, se vierem, terão melhores condições de vida. Mesmo que estejam desempregados, o filho vai estar na escola e o suporte do Estado vai ser muito melhor em São Paulo do que em qualquer área do Nordeste. Muitas dessas pessoas reclamam da violência da periferia, mas violência maior é não ter acesso a nada.


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