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GUERRA URBANA /ENTREVISTA
Em entrevista à Folha, governador relaciona quadro social a ataques e afirma que mentalidade da minoria branca do Brasil
tem de mudar
Burguesia terá de abrir a bolsa, diz Lembo
MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA
O governador de São Paulo,
Cláudio Lembo, afirma que o problema de violência no Estado só
será resolvido quando a "minoria
branca" mudar sua mentalidade.
"Nós temos uma burguesia muito
má, uma minoria branca muito
perversa", afirmou. "A bolsa da
burguesia vai ter que ser aberta
para poder sustentar a miséria social brasileira no sentido de haver
mais empregos, mais educação,
mais solidariedade, mais diálogo
e reciprocidade de situações."
Lembo criticou o ex-governador Geraldo Alckmin, que disse
que aceitaria ajuda federal contra
as ações do PCC se ainda estivesse
no cargo, e o ex-presidente FHC,
que atacou negociação entre o Estado e a facção criminosa para o
fim dos ataques. Leia abaixo os
principais trechos da entrevista.
Folha - Os jornais estão noticiando hoje [ontem] que houve uma
matança em São Paulo na madrugada de terça. A polícia está sob
controle ou está partindo para uma
vingança?
Cláudio Lembo - A polícia está
totalmente sob controle. Eu conversei muito longamente com o
coronel Elizeu Eclair [comandante-geral da PM] e estou convicto
de que ela está agindo dentro dos
limites e com muita sobriedade.
Todas as noites há confrontos nas
ruas da cidade e esses conflitos foram exasperados nesses dias. Mas
vingança, não. A polícia agiu para
evitar o pior para a sociedade.
Folha - Foram 93 mortes. Elas estão dentro dos limites? O senhor
tem segurança que todos que morreram estavam em confronto?
Lembo -E o conflito que houve
da cidade com a bandidagem? Foi
violento. É possível que tenha havido tragédias, mas pelo que estou informado não houve nada
que fosse além dos confrontos diretos.
Folha - Só no IML (Instituto Médico Legal) estão 40 mortos e não se
sabe nem o nome dessas pessoas.
Lembo -Os nomes vão ser revelados. Estamos resolvendo questões burocráticas, de identificação, mas vão ser revelados.
Folha - Jornalistas da Folha entraram no IML e viram fotos de pessoas
mortas com tiros na cabeça. Que garantia a sociedade tem de que não
morreram inocentes e de que o Estado, por meio da polícia, não está
executando essas pessoas?
Lembo -Não está, de maneira alguma. E digo a você: fui muito
aconselhado a falar tolices como
"aplique-se a lei do Talião". Fui
totalmente contrário. Faremos
tudo dentro da legalidade e do Estado de Direito.
Folha - O senhor não se assusta
com o número de mortos?
Lembo - Eu me assusto com toda
a realidade social brasileira. Acho
que tudo isso foi um grande alerta
para o Brasil. A situação social e o
câncer do crime é muito maior do
que se imaginava. Este é o grande
produto desses dias todos de conflito. Nós temos que começar a refletir sobre como resolver essa situação, que tem um componente
social e um componente criminoso, ambos gravíssimos. O crime
organizado trabalha com a droga.
A droga é um produto caro, consumido por grandes segmentos
da sociedade. Enquanto houver
consumidor de drogas, haverá
crime organizado no tráfico. É assim aqui, na Itália, nos EUA, na
Espanha. O crime se alimenta do
consumidor de drogas.
Folha - E da miséria...
Lembo - Talvez no Brasil tenha
esse componente também. O crime organizado destruiu valores.
O Brasil está desintegrado. Temos
que recompor a sociedade. A
questão social é muito grave.
Folha - O senhor é um homem público há tantos anos, está num partido, o PFL, que está no poder desde que, dizem, Cabral chegou ao
Brasil.
Lembo -Essa piada é minha.
Folha - O que o senhor pode dizer
para um jovem de 15 a 24 anos, que
vive em ambientes violentos da periferia? Que ele vai ter escola? Saúde? Perspectivas de emprego? Como afastá-lo de organizações criminosas como o PCC?
Lembo -Acho que você tem duas
situações muito graves: a desintegração familiar que existe no Brasil, e a perda... Eu sou laico, é bom
que fique claro para não dizerem
que sou da Opus Dei. Mas falta
qualquer regramento religioso. O
Brasil está desintegrado e perdeu
seus valores cívicos. É ridículo falar isso mas o Brasil só acredita na
camisa da seleção, que é símbolo
de vitória. É um país que só conheceu derrotas. Derrotas sociais...Nós temos uma burguesia
muito má, uma minoria branca
muito perversa.
Folha - Que ficou assustada nos
últimos dia.
Lembo -E que deu entrevistas
geniais para o seu jornal. Não há
nada mais dramático do que as
entrevistas da Folha [com socialites, artistas, empresários e celebridades] desta quarta-feira. Na
sua linda casa, dizem que vão sair
às ruas fazendo protesto. Vai fazer
protesto nada! Vai é para o melhor restaurante cinco estrelas
junto com outras figuras da política brasileira fazer o bom jantar.
Folha - Tomar conhaque de R$
900 [preço de uma única dose do
conhaque Henessy no restaurante
Fasano].
Lembo -Nossa burguesia devia é
ficar quietinha e pensar muito no
que ela fez para este país.
Folha - O senhor acha que essas
pessoas são responsáveis e não
percebem?
Lembo -O Brasil é o país do duplo pensar. Conhecemos a inquisição de 1500 até 1821. Então você
tinha um comportamento na rua
e um comportamento interior, na
sua casa. Isso é o que está na sociedade hoje. Essas pessoas estão
falando apenas para o público externo. É um país que é dúbio.
Folha - Onde o senhor responsabiliza essas pessoas?
Lembo -Onde? Na formação histórica do Brasil. A casa grande e a
senzala. A casa grande tinha tudo
e a senzala não tinha nada. Então
é um drama. É um país que quando os escravos foram libertados,
quem recebeu indenização foi o
senhor, e não os libertos, como
aconteceu nos EUA. Então é um
país cínico. É disso que nós temos
que ter consciência. O cinismo
nacional mata o Brasil. Este país
tem que deixar de ser cínico. Vou
falar a verdade, doa a quem doer,
destrua a quem destruir, porque
eu acho que só a verdade vai construir este país.
Folha - Mas qual é, objetivamente, a responsabilidade delas nos fatos que ocorreram na cidade?
Lembo -O que eu vi [nas entrevistas para a Folha] foram dondocas de São Paulo dizendo coisinhas lindas. Não podiam dizer
tanta tolice. Todos são bonzinhos
publicamente. E depois exploram
a sociedade, seus serviçais, exploram todos os serviços públicos.
Querem estar sempre nos palácios dos governos porque querem
ter benesses do governo. Isso não
vai ter aqui nesses oito meses
[prazo que resta para Lembo deixar o governo]. A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para
poder sustentar a miséria social
brasileira no sentido de haver
mais empregos, mais educação,
mais solidariedade, mais diálogo
e reciprocidade de situações.
Folha - O senhor diria que elas
pensam que aquele rapaz de 15 a
24 anos, que vive perto da selvageria...
Lembo - ...pode ser o Bom Selvagem do Rosseau? Não pode.
Folha - O endurecimento na legislação pode resolver o problema?
Lembo -Transitoriamente pode
resolver. Mas se nós não mudarmos a mentalidade brasileira, o
cerne da minoria branca brasileira, não vamos a lugar algum.
Folha - O senhor diz que muita
gente falou besteira sobre os episódios. Dos EUA, o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso criticou a possibilidade de o governo
ter feito acordo com os criminosos
para cessar a violência.
Lembo -Eu acho que o presidente Fernando Henrique poderia ter
ficado silencioso. Ele deveria me
conhecer e conhecer o governo de
SP. Eu não posso admitir nem a
hipótese de se pensar isso. Para
opinar sobre um tema tão amargo, tão grave, ele teria que refletir,
pensar. E se informar. Quanto ao
presidente [FHC], pode ser que
eventualmente ele tenha precedente sobre acordos. Eu não tenho.
Folha - Vimos o senhor dando
muitas entrevistas na TV. Mas SP
teve um outro governador [Alckmin], tem um candidato ao governo e ex-prefeito [Serra]. O senhor
ficou sozinho?
Lembo -No poder, um homem é
absolutamente solitário. Houve
momentos em que praticamente
fiquei sozinho. Mas devo agradecer a Polícia Militar e a Polícia Civil também, que estiveram firmes
ao meu lado.
Folha - O ex-governador Alckmin
telefonou para o senhor em solidariedade?
Lembo -Dois telefonemas.
Folha - O senhor achou pouco?
Lembo -Eu acho normal. Os pulsos [telefônicos] são tão caros...
Folha - E o candidato José Serra?
Lembo -Não telefonou. Eu recebi telefonema da governadora
Rosinha [do Rio de Janeiro] e de
Aécio Neves [governador de
MG], que estava em Washington,
ele foi muito elegante. Um ofício
do governador Mendonça, de
Pernambuco. Recebi muitos
apoios, do Poder Judiciário, e a
Assembléia Legislativa, deputados de todas as bancadas, nenhum partido faltou.
Folha - As autoridades paulistanas garantiram, nos últimos anos,
que o PCC estava desmantelado,
que era um dentinho aqui ou ali.
Elas enganaram os paulistanos?
Lembo -Não saberia responder.
Eu não engano. Eu acho que nós
ganhamos uma situação mas é
um grande risco. Temos que ficar
muito atentos.
Folha - Essas autoridades garantiram que o PCC tinha acabado. Ou
elas enganaram...
Lembo -Ou o dentinho era
maior do que elas diziam.
Folha - Ou foram incompetentes.
O senhor vê terceira alternativa?
Lembo -Pode ser que tenham sido exageradas no momento de
transferir segurança. Quiseram
ser tranquilizadoras.
Folha - Então elas iludiram as
pessoas?
Lembo -É possível.
Folha - O senhor pode dizer que o
PCC pode acabar até o fim de seu
governo?
Lembo -Só se eu fosse um louco.
E ainda não estou com sinal de
demência. Acho que o crime organizado é perigosíssimo. Ele se
recompõe porque ele tem possibilidades enormes na sociedade.
Folha - O ex-presidente Fernando
Henrique não telefonou?
Lembo -Não, não. Ele estava em
Nova York. O presidente Lula telefonou, foi muito elegante comigo. Conversei muito com o presidente, ele me deu muito apoio. E o
Márcio [Thomaz Bastos] veio,
conversamos firmemente, com
lealdade. E ele chegou à conclusão
que não era necessário nem Exército nem a guarda nacional. Tivemos uma conversa responsável, e
o equilíbrio voltou. Mostrei que a
Polícia Civil e a Polícia Militar tinham condições de fazer retornar
a SP a ordem e a disciplina social.
Folha - O Datafolha mostrou que
73% acham que o senhor deveria
ter aceitado ajuda federal. O governador Alckmin disse que não rejeitaria a ajuda.
Lembo -Ele decidiria, se fosse governador, como achava melhor.
Eu decidi da forma que achei melhor. Quanto às outras pessoas,
faltou clareza de informação da
minha parte. E aí me penitencio.
Não é que não aceitei ajuda do governo. Ao contrário. Desde sempre houve vínculo forte entre o
sistema de informação da polícia
federal e a polícia de SP. A superintendência da PF em SP foi extremamente leal, solícita e dinâmica. Eu tinha uma Polícia Militar
muito aparelhada. Eu não poderia
tirar esse respeito e esse moral que
a tropa tinha que ter naquele momento tão difícil aceitando tanques de guerra do Exército. E aí
uma sociedade que gosta de paternalismo, como a brasileira,
queria Exército, tropas americanas, tropas alemãs, tropas de todo
o mundo aqui. Não é assim. Temos que ser fortes, saber decidir
em momentos difíceis e dar valor
ao que é nosso. Foi o que fiz. Em
48 horas liquidou-se o problema.
O Exército é para matar o adversário. Eu queria recolher os adversários possíveis. Nós estávamos
num conflito social.
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