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Policiais estão se vingando, afirma analista britânica
FÁBIO VICTOR
DE LONDRES
No início da tarde de anteontem
na Inglaterra, antes de saber dos
números de suspeitos mortos pela polícia paulista na esteira da onda de ataques do PCC, a pesquisadora britânica Fiona Macaulay
disse à Folha que o reflexo mais
perigoso da crise seria uma ameaça ao Estado de Direito no país,
com o aumento de execuções sumárias pelas forças policiais.
Horas depois, na segunda parte
da entrevista, a brasilianista foi
avisada pela reportagem de que o
temor tinha fundamento e que o
número dessas vítimas já ultrapassava a casa dos 70. "É vingança. Os policiais se sentem sob estado de sítio e acham que matar é a
única resposta possível, mas também fazem isso pela sensação de
impunidade", afirmou.
Macaulay avalia que a política
de isolar os líderes criminosos em
regimes ultrafechados, adotada
em São Paulo, de nada adiantará
enquanto agentes penitenciários
forem subempregados e, portanto, corruptíveis. Defende investimento em pessoal e inteligência.
Doutora em ciência política pela
Universidade de Oxford, onde ensinou, de 2000 a 2005, no Centro
de Estudos Brasileiros da Instituição, é hoje professora do Departamento de Estudos para a Paz da
Universidade de Bradford.
Especialista em sistema carcerário brasileiro, foi pesquisadora
para o país da Anistia Internacional, para a qual produziu em 1999
o relatório "Aqui Ninguém Dorme Sossegado". Hoje escreve um
capítulo sobre o tema para o livro
"Estado e Violência no Brasil", a
ser publicado neste ano.
Folha - A onda de ataques do PCC
surpreendeu a sra.?
Fiona Macaulay - O Estado de
São Paulo tentou há alguns anos
quebrar o poder do crime organizado no sistema penitenciário, já
que havia conivência com esse esquema. Quando o dr. Nagashi
[Furukawa, secretário da Administração Penitenciária] entrou,
houve uma megarrebelião [em
2001] que foi resultado direto do
fato de ele tentar quebrar esse esquema. A partir daí instituíram o
RDD, uma tentativa de separar os
líderes do crime organizado da
massa dos presos.
Naquele momento, o PCC usou
o argumento de que protestava
contra as condições desumanas
dos presídios, mas isso já existia e
ainda existe, não teve nada a ver
com a rebelião. Ali não me surpreendeu, sabia o que estava
ocorrendo. Agora era de se pensar
que a resposta daquela época tinha sido bem-sucedida. A pergunta é o que deu errado. A surpresa foi porque achava que São
Paulo tinha algumas políticas públicas para lidar com a questão, o
que em outros Estados não existe.
Folha - Como a sra. analisa a recusa de São Paulo à ajuda federal?
Macaulay - Claro que tem a
questão eleitoral, mas o Espírito
Santo também já recusou quando
estava praticamente controlado
por um grupo criminoso ligado à
polícia. E às vezes pedem ajuda e
não conseguem. Fernando Henrique Cardoso vetou um pedido de
intervenção federal no Espírito
Santo. É uma perversidade, porque seja quem pedir ou oferecer
ajuda, os dois lados têm que trabalhar juntos. Você não resolve
um problema enraizado feito esse
sem coalizão nem sinergia. Não
sei o que acontecerá. Aquela megarrebelião não resultou em muitas mortes e, estrategicamente falando, não foi boa para o crime
organizado, porque gerou a construção de mais presídios de segurança máxima com RDD. Eles
perderam. Agora mudaram de tática, querem outros resultados.
Essa tática de atacar a polícia é
muito mais ousada do que tomar
familiares como reféns, é um enfrentamento direto com o Estado.
Folha - Desta vez eles ganharam?
Macaulay - É difícil dizer. Mas
acho que perdeu a sociedade brasileira. Imagino uma situação em
que os dois lados utilizam violência de forma indiscriminada. O
crime organizado a usa de maneira criminal e condenável. O problema é que, na resposta do Estado, o uso da violência deve respeitar as leis. Tenho medo de uma
resposta violenta com a lógica:
"Vamos matar esses f.d.p. porque
não vale a pena colocá-los na cadeia depois do que eles fizeram lá
de dentro". Isso talvez leve a polícia a seguir uma política de justiça
sumária, por meios extralegais.
Seria péssimo para o fortalecimento do Estado de Direito no
Brasil e um retrocesso para as pessoas que tentaram construir uma
polícia tecnicamente mais preparada. A resposta policial nas próximas semanas será chave, mostrará o caminho que ela seguirá. É
um momento muito perigoso.
Folha - Como o Estado evita a perda do controle sobre a polícia?
Macaulay - Pense na gratificação
paga no Rio aos policiais que mais
matam. Em São Paulo o governo
Covas resistiu a isso, mas na verdade tudo já acabou. Se você for à
Ouvidoria [da PM], verá que o
número de civis mortos pela polícia cresce. E isso não reflete uma
mudança na taxa de criminalidade, mas uma política pública, uma
certa tolerância com essa prática.
Folha - Há um paralelo possível
da atual situação em São Paulo
com outros países?
Macaulay - Que saiba, não, mas
talvez seja ignorância minha. Mas
levei autoridades penitenciárias
brasileiras para conhecer aqui
[Reino Unido] presídios para redes criminosas. Para isolá-los do
contato com suas redes você não
precisa trancá-los 23 horas por
dia, mas controlar o ambiente do
presídio e monitorar suas atividades. O local não é muito rígido,
porque o trabalho maior é com os
agentes penitenciários. Tem de
haver qualidade de trabalho.
A questão dos plantões no Brasil é ridícula. Um agente que atua
24 horas seguidas trabalhará mal,
mas eles gostam, têm três dias livres para fazer bicos, porque o salário é muito ruim. Todos os
agentes com quem conversei têm
estresse, alcoolismo ou distúrbios
mentais. Numa situação dessas
você fica muito mais corruptível.
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