São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Policiais estão se vingando, afirma analista britânica

FÁBIO VICTOR
DE LONDRES

No início da tarde de anteontem na Inglaterra, antes de saber dos números de suspeitos mortos pela polícia paulista na esteira da onda de ataques do PCC, a pesquisadora britânica Fiona Macaulay disse à Folha que o reflexo mais perigoso da crise seria uma ameaça ao Estado de Direito no país, com o aumento de execuções sumárias pelas forças policiais.
Horas depois, na segunda parte da entrevista, a brasilianista foi avisada pela reportagem de que o temor tinha fundamento e que o número dessas vítimas já ultrapassava a casa dos 70. "É vingança. Os policiais se sentem sob estado de sítio e acham que matar é a única resposta possível, mas também fazem isso pela sensação de impunidade", afirmou.
Macaulay avalia que a política de isolar os líderes criminosos em regimes ultrafechados, adotada em São Paulo, de nada adiantará enquanto agentes penitenciários forem subempregados e, portanto, corruptíveis. Defende investimento em pessoal e inteligência.
Doutora em ciência política pela Universidade de Oxford, onde ensinou, de 2000 a 2005, no Centro de Estudos Brasileiros da Instituição, é hoje professora do Departamento de Estudos para a Paz da Universidade de Bradford.
Especialista em sistema carcerário brasileiro, foi pesquisadora para o país da Anistia Internacional, para a qual produziu em 1999 o relatório "Aqui Ninguém Dorme Sossegado". Hoje escreve um capítulo sobre o tema para o livro "Estado e Violência no Brasil", a ser publicado neste ano.
 

Folha - A onda de ataques do PCC surpreendeu a sra.?
Fiona Macaulay -
O Estado de São Paulo tentou há alguns anos quebrar o poder do crime organizado no sistema penitenciário, já que havia conivência com esse esquema. Quando o dr. Nagashi [Furukawa, secretário da Administração Penitenciária] entrou, houve uma megarrebelião [em 2001] que foi resultado direto do fato de ele tentar quebrar esse esquema. A partir daí instituíram o RDD, uma tentativa de separar os líderes do crime organizado da massa dos presos.
Naquele momento, o PCC usou o argumento de que protestava contra as condições desumanas dos presídios, mas isso já existia e ainda existe, não teve nada a ver com a rebelião. Ali não me surpreendeu, sabia o que estava ocorrendo. Agora era de se pensar que a resposta daquela época tinha sido bem-sucedida. A pergunta é o que deu errado. A surpresa foi porque achava que São Paulo tinha algumas políticas públicas para lidar com a questão, o que em outros Estados não existe.

Folha - Como a sra. analisa a recusa de São Paulo à ajuda federal?
Macaulay -
Claro que tem a questão eleitoral, mas o Espírito Santo também já recusou quando estava praticamente controlado por um grupo criminoso ligado à polícia. E às vezes pedem ajuda e não conseguem. Fernando Henrique Cardoso vetou um pedido de intervenção federal no Espírito Santo. É uma perversidade, porque seja quem pedir ou oferecer ajuda, os dois lados têm que trabalhar juntos. Você não resolve um problema enraizado feito esse sem coalizão nem sinergia. Não sei o que acontecerá. Aquela megarrebelião não resultou em muitas mortes e, estrategicamente falando, não foi boa para o crime organizado, porque gerou a construção de mais presídios de segurança máxima com RDD. Eles perderam. Agora mudaram de tática, querem outros resultados. Essa tática de atacar a polícia é muito mais ousada do que tomar familiares como reféns, é um enfrentamento direto com o Estado.

Folha - Desta vez eles ganharam?
Macaulay -
É difícil dizer. Mas acho que perdeu a sociedade brasileira. Imagino uma situação em que os dois lados utilizam violência de forma indiscriminada. O crime organizado a usa de maneira criminal e condenável. O problema é que, na resposta do Estado, o uso da violência deve respeitar as leis. Tenho medo de uma resposta violenta com a lógica: "Vamos matar esses f.d.p. porque não vale a pena colocá-los na cadeia depois do que eles fizeram lá de dentro". Isso talvez leve a polícia a seguir uma política de justiça sumária, por meios extralegais.
Seria péssimo para o fortalecimento do Estado de Direito no Brasil e um retrocesso para as pessoas que tentaram construir uma polícia tecnicamente mais preparada. A resposta policial nas próximas semanas será chave, mostrará o caminho que ela seguirá. É um momento muito perigoso.

Folha - Como o Estado evita a perda do controle sobre a polícia?
Macaulay -
Pense na gratificação paga no Rio aos policiais que mais matam. Em São Paulo o governo Covas resistiu a isso, mas na verdade tudo já acabou. Se você for à Ouvidoria [da PM], verá que o número de civis mortos pela polícia cresce. E isso não reflete uma mudança na taxa de criminalidade, mas uma política pública, uma certa tolerância com essa prática.

Folha - Há um paralelo possível da atual situação em São Paulo com outros países?
Macaulay -
Que saiba, não, mas talvez seja ignorância minha. Mas levei autoridades penitenciárias brasileiras para conhecer aqui [Reino Unido] presídios para redes criminosas. Para isolá-los do contato com suas redes você não precisa trancá-los 23 horas por dia, mas controlar o ambiente do presídio e monitorar suas atividades. O local não é muito rígido, porque o trabalho maior é com os agentes penitenciários. Tem de haver qualidade de trabalho.
A questão dos plantões no Brasil é ridícula. Um agente que atua 24 horas seguidas trabalhará mal, mas eles gostam, têm três dias livres para fazer bicos, porque o salário é muito ruim. Todos os agentes com quem conversei têm estresse, alcoolismo ou distúrbios mentais. Numa situação dessas você fica muito mais corruptível.


Texto Anterior: Guerra urbana/Análise: "Polícia deve ter salário decente para ser cobrada"
Próximo Texto: Guerra urbana/Prevenção: Juiz manda bloquear celular em prisões
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.