São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2010

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CECILIA GIANNETTI

Burrice digital


Num café de livraria, a tomada deve ser para que o freguês leve também sua própria cafeteira de casa e, bom, que se vire

SEI QUE no Rio de Janeiro deve ser considerado pecado e extravagância preocupar-se com algo além de calçamentos irregulares, buracos, balaços e outros desacertos que nem a pressão de uma Olimpíada conseguiu emendar. Mas corro esse risco.
Enquanto procuro por um café de livraria que tenha tomada para notebook, imagino a rotina de um escritor que usasse pena de pato como instrumento de trabalho, pelos idos do século 19. Esse cara, acho eu, buscaria uma taberna onde pudesse se sentar e rabiscar à pena diálogos para sua nova peça de teatro.
Lá, por algumas horas ao fim do dia, ele se ausentava da casa de alvenaria de pedra, onde mulher e quatro filhos alegravam o ambiente e puxavam com ele conversa. "Ué, se você o faz em casa, não é trabalho... Vamos falar da princesa! Viu só aqueles sapatos?"
Nessas horas o escritor sorria à esposa, afagava os moleques, que já começavam a queimar com vela seus papéis, e partia para a tal taberna.
Isso não sem ouvir os votos de boa sorte da esposa, que espichava a cabeça pela janela para gritá-los: "Quem você pensa que é? O Shakespeare do Morro do Castelo?"
Aí esse homem andava um bocado até chegar à taberna, onde se sentava com um copo de um vinho produzido por imigrantes açorianos, consumido para justificar sua presença no estabelecimento.
E lá ele ficava até que a inspiração o abandonasse ou quando os frequentadores se tornassem mais barulhentos que sua família.
No começo, o dono da taberna achou muito instigantes as maneiras daquele freguês e chegou a comentar com um ajudante: "Olha só o malandro! Ele consegue escrever e, vez em quando, levar o copo à boca! Não te estarrece, ó, Ruviato, tamanho malabarismo?" "Creio que isso deve ter exigido muito treino...", respondia o funcionário ao patrão.
Depois, habituados com as visitas daquele freguês, já não achavam nada demais que o sujeito fosse capaz de consumir algo e, ao mesmo tempo, escrever. Eram, afinal, comerciantes espertos da capital da colônia: já tinham visto de tudo.
Em 2010, na maior parte dos cafés de livrarias do Rio, parece inconcebível que se queira beber café, água, refrigerante ou vinho enquanto se escreve em uma máquina que necessita, vez por outra, de recarga de energia.
Papel e caneta, ok. Mas notes e netbooks talvez tenham que se tornar tão velhos quanto a pena de pato para que, num café carioca, não se estranhe mais a pergunta: "Tem mesa com tomada?"
De todas as livrarias que percorri em busca de energia elétrica -para uso ocasional no note- e de cafeína -para uso compulsivo por mim- no Catete, Botafogo, Ipanema e Leblon, só no último bairro encontrei uma que oferecia duas mesas aos que escrevem em computadores portáteis. E que escrevam a seco.
As mesas premiadas ficam fora da área onde são atendidos os "desplugados". A garçonete prometeu que levaria o cardápio no corredorzinho da tomada, quando implorei. Disse, porém, que "no corredor, só café".
Pedi, e não veio jamais o café. A tomada deve ser para que o freguês leve também sua própria cafeteira de casa e, bom, que se vire.
Se eu não fosse uma esnobe, iludida de que vivo na era digital, uma afetada que dá preferência a escrever no computador portátil, o que bem poderia fazer em caderninhos, caprichando na caligrafia, trancafiada no escritório, teria café, sopa, almoço e até jantar no café de livraria de minha escolha.
Lá, onde também gastaria em livros. Mas eu que aprenda a não me achar o Shakespeare do subúrbio.


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